quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Religiosidade Mínima, Matrizes e Pentecostalismo no Brasil

André Droogers, em seu texto “A Religiosidade Mínima Brasileira”, publicado no periódico “Religião e Sociedade”, utiliza um conceito chamado por ele de “RMB”, ou a religiosidade mínima brasileira. Segundo Droogers, a RMB se trata de um tipo de religiosidade que é manifestada publicamente principalmente em contextos seculares, “que é veiculada pelos meios de comunicação em massa, mas também pela linguagem cotidiana” . Ou seja, como é utilizada pela mídia, tenta traduzir o que muitos brasileiros pensam sobre “religião”, tornando-se um conceito “geral” para que um grande número de pessoas possa entender e se identificar com determinado aspecto, principalmente no que se considera “porta-vozes” da Religiosidade Mínima Brasileira, ou seja, personalidades do cotidiano brasileiro que voltam seus discursos para o grande público . Portanto, podemos assinalar que o conceito de religiosidade mínima brasileira de Droogers exprime um aspecto religioso presente na cultura brasileira, sendo comum ao povo em geral. Na religiosidade mínima, o conceito de Deus assume lugar predominante, junto com o conceito de Fé, sinônimo de segurança e confiança. Guiado pela discussão entre Rubem César e Pedro de Oliveira no periódico “Comunicações do ISER 5”, de 1983, sobre aspectos religiosos em contraste com a religiosidade brasileira, Droogers abre uma reflexão de onde nasce o conceito de Religiosidade Mínima Brasileira. Primeiro, analisando os argumentos de Rubem César, entende-se que ele chama de “uma grande matriz simbólica de uso comum, sobre a qual cada grupo religioso faz seu próprio recorte e combina seu repertório de crenças” , da qual pode ser traduzido em um embaralhado de peças diferentes que são usadas por cada crença religiosa brasileira de um jeito diferente, montando seus próprios fundamentos. Já Pedro de Oliveira assinala a presença de uma “religião brasileira”, já que pode haver a existência de uma “cultura brasileira”, onde todos os brasileiros a reconhecem e considerem elementos religiosos em comum .

MATRIZES RELIGIOSAS BRASILEIRAS

Partindo da idéia de que, na religiosidade mínima o conceito de Deus assume lugar predominante, junto com o conceito de Fé, sinônimo de segurança e confiança, podemos usar o conceito de “matriz”, ou constantes no pluralismo religioso presente em “Matriz e matrizes: constantes no pluralismo religioso”, de José Bittencourt Filho. Segundo o autor, no mesmo texto, existe uma matriz brasileira que é for¬mada pelas diversas culturas que aqui se encontraram com a colonização e a matriz reli¬giosa brasileira está inserida den¬tro da matriz cultural bra¬sileira . Ou seja, uma matriz religiosa seria definida como “um composto de valores religiosos e de símbolos que lhe correspondem e que ensejam uma religiosidade ampla e difusa vivenciada pela maioria dos brasileiros” . Este composto de valores está intimamente ligado ao pluralismo religioso brasileiro, que exige um grande esforço para que seja compreendido a fim de traduzir uma interação complexa de idéias e símbolos religiosos que se misturaram ao longo de nossa história, tendo como principais agentes os fatores ideológicos, políticos e por que não, econômicos para definir uma identidade coletiva. De acordo com essa idéia, José Bittencourt tenta aplicar o conceito de “matriz religiosa brasileira” no movimento pentecostal brasileiro, que se difunde principalmente sobre a população urbana e menos privilegiada. Bittencourt argumenta que, devido ao fato de o movimento pentecostal não ser uma igreja tipicamente protestante, razão pela qual teve grande difusão sobretudo nas culturas católicas , é possível a identificação de “matrizes religiosas” nestes movimentos. Chamamos a atenção aqui para o que é chamado pelo autor de “pentecostalismo autônomo”, ou seja, o pentecostalismo mais recente, que tem pouco ou nada de influências protestantes, tornando-se então movimentos dotados de certa originalidade e tipicamente urbanos. Bittencourt assinala periodicamente o surgimento do dito “pentecostalismo autônomo”, tratando-se da quarta família confessional criada a partir do “protestantismo de missão”, da qual se enquadrariam as tradições reformadas vindas diretamente das missões de evangelização promovidas pelas igrejas protestantes tradicionais dos Estados Unidos, como por exemplo a Presbiteriana, Batista, Metodista, entre outras. Portanto, além de não serem igrejas tipicamente protestantes, sofreram grande influência das culturas católicas, sobretudo do catolicismo popular, presente no Brasil desde sua colonização por parte de Portugal.

MATRIZES CATÓLICAS DO PENTECOSTALISMO

João Décio, em seu texto “Matrizes católico-popular do Pentecostalismo”, presente no mesmo livro, diz que muitas vezes, o pentecostalismo é enxergado como um fenômeno de um paradigma expansão pura e simplesmente protestante norte-americano. Por outro lado, o processo de formação que o pentecostalismo brasileiro sofreu não deixa o seu lócus real, que é a própria cultura popular. No Brasil essa cultura popular se dá na forma do Catolicismo Popular, ou seja, o tipo de religião que era mais comum e adotado na maior parte do território brasileiro, sendo uma herança da colonização portuguesa desde o século XVI. Porém, o fator que realmente solidificou a presença do pentecostalismo, principalmente nas áreas urbanas brasileiras está na “linha de ruptura”. Como afirma Passos, “(...)uma primeira ruptura relaciona as ofertas pentecostais e a cultura metropolitana: (...)novos deuses – pentecostalismo – para uma nova sociabilidade – metrópole.” Então, temos dois fatores importantes para a formação do pentecostalismo no Brasil como o conhecemos hoje: 1- O pentecostalismo é, em si, um fenômeno urbano, típico de ambientes industriais; e 2- Durante a década de 30, houve um grande fluxo migratório de famílias rurais para os ambientes urbanos, possibilitado pela reforma política contida no Estado Novo de Getúlio Vargas. Podemos apontar, superficialmente, algumas continuidades do catolicismo popular no pentecostalismo. As funções miraculosas dos santos populares, presentes principalmente no ambiente rural, pode ser encontrado na evocação de Jesus nos cultos pentecostais. Com a diferença de que é dada uma exclusividade á figura de Jesus, baseada no discurso iconoclasta pentecostal, é grande as solicitações de intervenções mágicas de poderes sagrados a fim de solucionar problemas típicos da vida metropolitana. No “neopentecostalismo” podemos observar também a presença de uma centralização de poder nas mãos de certas instituições, muito semelhante ao processo que ocorre com a Igreja Católica. Tal fator é muito comum, para citar um exemplo, na Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), onde o nome e a instituição são essenciais para o reconhecimento do crente que faz parte do grupo. A nomenclatura também é observada como um “resíduo” da cultura católica, como por exemplo, bispos, apóstolos, diáconos, e outros. O uso de símbolos igualmente católicos podem ser reconhecidos claramente no auge de um culto neopentecostal, sendo estes a cruz, a água, o óleo, o fogo e rituais de bênção e purificação.

MATRIZES PROTESTANTES DO PENTECOSTALISMO

Assim como ocorre com o catolicismo, são claras também algumas matrizes protestantes no pentecostalismo brasileiro. Sabe-se que o nascimento do pentecostalismo deu-se em um ambiente protestante que começou em 1901 entre cristãos que se reuniam na rua Azusa em Los Angeles, presidida por William Joseph Seymour, um sacerdote afro-americano e simultaneamente em vários outros lugares na América do Norte. O avivamento na rua Azuza foi o primeiro avivamento pentecostal a receber atenção significativa, e muitas pessoas de todo o mundo tornou-se atraída para ele. A imprensa de Los Angeles deu muita atenção ao aviamento de Seymour, o que ajudou a alimentar o seu crescimento. Aqui surge o conceito de “pentecostes” presente nos cultos pentecostais hoje, ou seja, de que o Espírito Santo está descendo á terra durante o ápice do culto.
Paulo Barrera coloca em seu texto “Matrizes protestantes do Pentecostalismo”, como uma das matrizes protestantes, o que ele chama de “precariedade estrutural do protestantismo” . Esta seria um dos fundamentos da reforma protestante, a sola fide (somente a fé), afirmando que é exclusivamente baseado na Graça de Deus, através somente da fé daquele que crê, por causa da obra redentora do Senhor Jesus Cristo, que são perdoadas as transgressões da Lei de Deus. Podemos traduzir este conceito no princípio do “Sacerdócio Universal”. Barrera coloca este ponto como “precário” pelo fato de que se constitui em uma idéia frágil, pois as religiões necessitam de alguém, contratado ou não, para controlar os fiéis e guiar a crença dos mesmos. Sem a necessidade dos “tradutores”, certamente o culto sofreria um processo de pulverização, sem ter uma organização nem concentração fixas. Outro resíduo do protestantismo pode ser observado em outro fundamento da Reforma, a Sola scriptura (somente a Escritura), ou seja, a idéia de que a Bíblia traz a principal e verdadeira palavra da fé cristã, tendo certo grau de primazia antes á tradição delegada pela Igreja Católica. Barrera ainda coloca como resíduo protestante o “movimento de santidade” presente no metodismo americano, que circulava nos EUA durante o século XIX. A literatura evangélica ainda hoje é bem difundida entre as classes sociais mais baixas, coincidentemente as que mais freqüentam cultos pentecostais no Brasil. Barrera ainda coloca algumas literaturas evangélicas de época, como Manual do Cristão, Guia para a Santidade, A Doutrina Escritural para a Perfeição Cristã, e assim por diante, como promotoras da busca de santidade contida nos ensinamentos wesleyanos da “segunda bênção”. Finalmente, o uso de “especialistas” pode ser considerado mais um resíduo protestante na tradição pentecostal. Como “especialista” podemos entender que são personagens sociais que surgem para atender á sociedade devido ao excedente capitalista moderno, ou seja, trata-se de um personagem tipicamente moderno e necessário para que a sociedade moderna funcione. Este “especialista” tem trabalho remunerado, e faz trabalhos para a sociedade que não tem tempo de especializarem-se em certas técnicas ou assuntos devido ao trabalho e diversos outros fatores. O pastor pode ser considerado um destes “especialistas”, devido á dois fatores: 1- O princípio de “sacerdócio universal” da reforma, ou seja, qualquer pessoa tem o direito de exercer a fincão sacerdotal, basta ter fé; e 2- Hoje em dia, as pessoas dificilmente têm tempo para o sacerdócio, ou seja, apesar de poderem exercer tal função (segundo a doutrina protestante), estão demasiadamente atarefadas por causa das rotinas de trabalho. Portanto, é comum pagar um especialista para que este exerça a função desejada. Com um pastor não é diferente, pois em igrejas de tradição protestante histórica o dinheiro é tratado como um aspecto comum do culto, pois serve para a manutenção da igreja e outros assuntos internos. Enquanto no protestantismo histórico o pastor tem a função de confirmar o que a comunidade já sabe como “verdade”, ele também decodifica a linguagem presente na bíblia para que todo e qualquer um entenda a mensagem contida nela. Já no pentecostalismo, o pastor, além destas duas funções, também é responsável por conduzir um ritual de purificação expulsão de entidades malignas dos fiéis, e no neopentecostallismo observamos que o pastor também necessita de grande dom carismático, para conduzir os fieis e prender a atenção dos mesmos.

PARA UMA REFLEXÃO

Ao longo do texto apresentado vimos o conceito de Religiosidade Mínima Brasileira apresentado por Droogers e o conceito de Matriz Religiosa e as matrizes do pentecostalismo no Brasil, apresentados no livro de Passos. Porém, convém uma consideração final que ilustra qual o papel da Religiosidade Mínima no pentecostalismo após os modelos apresentados. Retornando a fala de Droogers, RMB seria, em poucas palavras, uma tentativa de traduzir o que muitos brasileiros pensam sobre “religião”. Então, por RMB podemos considerar aspectos presentes no pentecostalismo que também fazem presença em outras crenças brasileiras.
Primeiramente, o conceito de Deus é comum á todos os brasileiros. Dizer que “Deus é brasileiro” é uma forma de constatar a presença da RMB no campo social, podendo se estender ao campo político, em forma de discurso para o eleitorado; para o campo do esporte em forma de torcida pelo seu time; ou até no campo da música popular brasileira, com letras que mencionam Deus ou Jesus Cristo. Depois, considerando o uso da RMB pela mídia, claramente podemos associar com o fato de que as igrejas pentecostais, em especial a Igreja Universal do Reino de Deus, usam os meios de comunicação em massa para projetar seus ensinamentos e crenças á um número maior da população, principalmente a população mais simples que são em grande parte espectadoras de programas de rádio ou televisão. Temos também a presença de “porta-vozes”, ou “tradutores” que levam um conceito de religião de modo que todos os brasileiros reconhecem quando vêem. Pastores de Igrejas se encaixam neste perfil. Peguemos por exemplo um pastor famoso por presidir a Igreja Internacional da Graça de Deus, Romildo Ribeiro Soares. Chegando ao ponto de até ser convidado para o programa de talk show de Jô Soares, esta figura é certamente conhecida entre a maioria dos brasileiros. Para o bem ou para o mal, ele desperta diferentes sentimentos na grande maioria do povo brasileiro, porém todos os sentimentos voltados para a religião, ou seja, todos o conhecem por ser um pastor pentecostal que leva a palavra de Deus para seus fiéis, não importando como e onde ele o faz.



BIBLIOGRAFIA

DROOGERS, André. “A Religiosidade Mínima Brasileira”, in Religião e Sociedade, Rio de Janeiro: ISER, 1987.

PASSOS, João Décio (org). Movimentos do Espírito: matrizes, afinidades e territórios pentecostais, São Paulo: Paulinas, 2005.

Por Fernando Tetsuo Miyahira

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Laicidade dos Estados Modernos: Ser ou não ser?

Há poucas semanas temos assistido á um episódio que desencadeou uma grande repercussão, não só na Comunidade Européia, mas no mundo inteiro. Estamos falando sobre o caso de Soile Lautsi, cidadã italiana, de origem finlandesa, e mãe de dois filhos, um de 11 e outro de 13 anos. Como mãe de estudantes de uma escola pública italiana ao norte do país, o instituto público Vittorino da Feltre, localizado na cidade de Abano Terme na província italiana de Padova, Soile criticou, em 2006, a presença de crucifixos nas paredes da escola pública, recorrendo com uma ação contra a escola, que recusou-se em retirá-los das paredes. A Corte Constitucional da Itália rejeitou sua reclamação, reservando os direitos da escola em manter os crucifixos em suas paredes. Discordando veemente da decisão da escola e da Corte Constitucional italiana, a cidadã italiana acaba indo ás últimas conseqüências, recorrendo á Corte Européia sobre o caso. Então, estendendo-se até o início desde mês de Novembro, foi tomada uma decisão, da parte da Corte Européia, de que os crucifixos deveriam ser retirados das paredes da escola, e uma indenização de 5 mil euros, o equivalente á mais de 7 mil dólares e a mais de 13 mil reais, para Soile Lautsi, por danos morais.
Soile argumentou que, sobre os crucifixos nas escolas, eles violam os princípios da secularidade pela qual as instituições públicas deveriam zelar, tratando-se de instituições de estados ditos Laicos, e também o direito de oferta de uma educação secular ás crianças . A decisão da Corte Européia foi tomada com base nas afirmações alegadas pela própria, em nota oficial: "O tribunal não foi capaz de compreender como a exibição, em salas de aula nas escolas do Estado, de um símbolo que pode razoavelmente ser associado com o catolicismo --religião majoritária na Itália-- poderia servir ao pluralismo educacional que foi essencial para a preservação de uma 'sociedade democrática' como foi concebido pela Convenção [Européia dos Direitos do Homem, de 1950], um pluralismo que foi reconhecido pelo Tribunal Constitucional italiano" . Já grande parte do povo italiano, ou seja, 87,8% da população que se denomina católica, repreendeu a decisão da Corte Européia em vetar a presença de crucifixos nas escolas públicas do país. Na cidade de Roma, o advogado Nicola Lettieri, que defendeu Roma no julgamento, disse que o governo apelará contra a decisão da comunidade, e até o caso ser decidido oficialmente, os crucifixos continuarão a marcar presença nas escolas italianas. Até a ministra italiana da Educação, Mariastella Gelmini, protestou contra o ocorrido, afirmando que o crucifixo "é um símbolo de nossa tradição". O premiere italiano, Silvio Berlusconi, também impôs uma postura rígida diante das circunstâncias: “Não é uma sentença coercitiva. Não há nenhuma possibilidade de coerção que nos impeça de manter os crucifixos nas salas de aula independentemente do sucesso do recurso ”, afirmou ele. Esta decisão, como era de se esperar, gerou duras críticas entre membros da Igreja Católica. O cardeal de Cracóvia, na Polônia, e ex-secretário pessoal de João Paulo II, Stanislaw Dsiwisz, classificou a sentença de "incompreensível" e disse que ela suscita "sérias preocupações para o futuro da liberdade religiosa na Europa" .
Primeiro, daremos uma olhada em alguns conceitos pertinentes á discussão apresentada. Termos como “laico” e “secular” foram largamente usados, seja pelos jornalistas que acompanharam o caso, seja pela própria Sra. Lautsi, personagem principal do caso. Busquemos o significado do termo “secularização” nos autores Paula Monteiro e Flávio Pierucci. Enquanto Monteiro afirma, em seu artigo “Max Weber e os dilemas da secularização” que é quando “(...)a religião deixa de legitimar as estruturas sociais(...)”, ou seja, é o fato de a Religião deixar seu papel como organizador e legitimador da sociedade tal como ela se apresenta; enquanto para Pierucci o termo significa nada mais do que “(...)a realocação da religião e divisão da sociedade em esferas(...)”, portanto, dividindo a sociedade em esferas “privadas” e “públicas”, aonde a Religião teria seu lugar reservado na esfera privada, retirando-a do cenário público, como descrito em seu artigo “Reencantamento e Dessecularização”. Ambas as definições são muito semelhantes, uma vez que os dois autores concordam acerca da “secularização” e “desencantamento” enquanto uma leitura Weberiana onde o primeiro trata-se de um processo de diferenciação da política e religião, e o segundo de uma eliminação da magia como meio de salvação, e, por conseguinte, de explicação do mundo. Vale lembrar que o uso destes conceitos estão intimamente ligados com um outro conceito, o de “mundo moderno”, ou seja, o mundo como ele se apresenta a partir de mudanças sociais que acarretaram, por exemplo, no Renascimento Cultural durante fins do século XV, ou até mesmo o grande momento de democracia e humanização que representou a Revolução Francesa em fins do século XVIII.
Considerando então o caso apresentado no começo deste artigo, busquemos o sentido do termo “secularização” para a Itália moderna. De acordo com a constituição italiana atual, o estado pode ser considerado um “estado laico”, ou seja, com uma separação visível entre a Política do Estado e qualquer tipo de envolvimento com a Religião . Então, podemos considerar de que a Itália é um país laico, aonde a sua educação deve ser secular, por lei federal. Porém é visto que, no ano de 1920, durante a época do fascismo, que as escolas deviam ter crucifixos, apesar disso não ser aplicado estritamente desde 1984, quando o catolicismo deixou de ser religião de Estado .
Em várias afirmações de membros da Igreja Católica e da população local, como descrito em todos os jornais que serviram como fonte para este artigo, é comum assistir uma postura tradicional, como em argumentos como “o uso dos crucifixos nas escolas detém a tradição italiana”, ou até “o crucifixo nas paredes das escolas é um símbolo do povo italiano e sua tradição.” Ora, tratando-se do berço do Cristianismo, remontando não somente á época em que o cristianismo era um culto local e clandestino, mas também á instituição do mesmo como religião oficial do Império Romano pelo imperador Constantino e justificado pelo Concílio de Nicéia em 325 AD, não é de se admirar que o povo italiano se revoltasse com esta decisão. Lembremo-nos também que mais de ¾ da população italiana pertence a fé católica. Neste ponto, invoco a escritora francesa Danielle Hervieu-Léger e seu “O Peregrino e o Convertido” para argumentar que a sociedade, ao contrário do Estado, não é laicizado na prática: “(...)nas sociedades modernas, a crença não é lei, e sim opção pessoal. Portanto, não se trata de uma ‘sociedade laicizada’ ” . Portanto, é plausível e até normal, que a população se sinta ofendida pela decisão tomada pela Corte Européia.
Tal fato se explica, aproveitando o banho de conceitos que estamos revendo, por um outro processo, o de “privatização” da religião. Entende-se por privatização, nos conceitos dados por José Casanova em seu “Religiones Públicas en el Mundo Moderno”, o isolamento da religião em uma esfera só sua, sem contato com a esfera política , não sendo assim mais um elemento organizador da sociedade moderna. Portanto, á religião é reservada a idéia de “esfera privada”, e á política, a “esfera pública”, de acordo com as idéias de Paula Monteiro sobre “esferas”. É visível também no autor a idéia de “desprivatização”, da qual seria a recusa da parte das religiões do mundo moderno em aceitar seu papel marginal reservado pela própria modernidade. Para Casanova, a “desprivatização” é um ocorrido comum na modernidade, e ocorre de modo global. Ora, de acordo com o caso observado acima, podemos supor que é impossível a religião na Itália passar pelo processo de “desprivatização”, uma vez que esta nunca foi “privatizada”. Nem nos tempos áureos do fascismo, onde foi proposta a primeira separação entre Estado e Igreja em 1921, a religião deixou o cenário político, onde, como dito anteriormente, foi posta a uma lei em que os crucifixos passariam a ser obrigatórios nas escolas italianas. Também podemos afirmar, com muita cautela , que a religião servia como um instrumento nas mãos da elite para organizar e manipular as massas durante o regime fascista.
Depois deste longo discurso teórico, algumas considerações finais devem ser dadas sobre o “caso Lautsi”. É inegável o fato de que estamos vivendo em um mundo moderno onde, teoricamente, a religião estaria reservada apenas á esfera privada, tal como previa os ideais da Revolução Francesa, ditando a ordem ocidental moderna. Porém, não é isto que estamos assistindo, e sim um mundo cada vez mais “dessecularizados”, ou como muitos cientistas da religião dizem, “reencantado”. Rússia, Brasil e Itália são exemplos ótimos para expressar o que queremos dizer.
Enfim, acima de tudo, vivemos em um mundo democrático (pelo menos sem considerar regimes teocráticos), aonde é a maioria que decide sobre quais medidas um país pode ou não pode tomar para si mesmo. Apelando também para a soberania nacional, apesar de muitas vezes esta não ser respeitada, o correto seria o caso da Itália e os crucifixos não sair dos limites nacionais, que, para infelicidade de alguns e a felicidade de muitos, lida muito bem com o fato de terem crucifixos em suas escolas. Mesmo que a Lei dos Homens é a que impera neste mundo moderno, e que de acordo com essa lei, religião e política devem manter uma boa e amigável distância, não nos esquecemos do seguinte: a voz do povo é a voz de Deus.

Por Fernando Tetsuo Miyahira.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Graduados afirmam: Ciência da religião não é teologia

Este artigo é de autoria de Gilmar Gonçalves da Costa, mestrando em Ciências da Religião da PUC - SP, e foi publicado no jornal "O Norte de Minas", de 20/10/2009.


O Professor de Geografia e Ensino Religioso do Ensino Fundamental da cidade de Bocaiúva/MG e Mestrando em Ciência da Religião da PUC/SP - Universidade Católica de São Paulo, Gilmar Gonçalves da Costa, escreveu para a redação de O Norte levantando uma polêmica, segundo ele ciências da religião não é o mesmo que teologia. De acordo com Gilmar especialista na área a população confunde os temas e a maioria vê os temas como um só. Acompanhe o que escreveu sobre o assunto com exclusividade para O Norte.

- Quando comuniquei a minha mãe que eu havia passado no Vestibular da Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES), para o Curso de Ciência da Religião, ela disse: “graças a Deus meu filho, assim você ficará mais próximo do Senhor nosso Pai”. Durante o Curso, andando pelo centro da cidade de Montes Claros, algumas pessoas amigas me cumprimentaram pela ótima escolha do Curso. Isso porque, segundo eles, eu estaria estudando com objetivo de levar a palavra de Deus ao irmão, ou seja, evangelizar. Com isso foi possível deduzir que, várias pessoas procuram o Curso Ciência da Religião acreditando que este é um Curso de Teologia. Uma coisa não tem nada a ver com outra. Em outras palavras, como diria Habermas, saber o que se fala, o que se faz ou o que se procura, sempre ajuda nos avanços intelectuais e até mesmo pessoais no cotidiano. Durante a minha Graduação em Ciência da Religião, muitas pessoas, até mesmo com graduação e mestrado citam que, simpatizam com o Curso Ciência da Religião por acreditarem que este Curso investiga a revelação ou essência do Sagrado. Gostaria de salientar que, a Ciência da Religião examina os processos religiosos e a incidência da religião no modo de vida social, ou seja, analisa os fatos sociais, psicológicos, históricos, geográficos, econômicos, estéticos e fisiológicos aplicados à religião. Enquanto que, a Teologia é o estudo sobre Deus – epifania do Sagrado. Assim, há um enorme distanciamento entre essas duas Disciplinas. Diante disso é importante que, o interessado em Ciência da Religião esteja esclarecido do que aborda este Curso e o método de pesquisa do mesmo. Por natureza, esta é uma Ciência empírica – prática em face às questões teóricas, que devem estar inseridas dentro da dimensão metateórica (análise de teorias) e não a partir de uma simples e ingênua interpretação pessoal confessional. Os processos teológicos marcam os estudos das religiões, sobretudo nos países que foram colonizados por uma política religiosa judáica – cristã, mas o mundo sente essa pressão e chama a atenção de que, é preciso distanciar das meras questões teológicas nos estudos acadêmicos aplicados à religião. Portanto, o estudante ou pesquisador de religião deve estar atento com os objetivos e métodos da Ciência da Religião, e deixar a revelação do sagrado – ou essência da religião, para os Teólogos e seus subjacentes. Ainda, aqueles curiosos ou interessados em cursar a Graduação e, ou a Pós-Graduação em Ciência da Religião é interessante que investigue as ementas e o programa curricular do Curso, objetivando verificar possíveis tendências de práticas religiosas, às quais poderão implicar confessionalmente nos estudos acadêmicos da religião, o que é irrelevante para as análises acadêmicas da Religião. Assim, pois, faz-se necessário que o estudante/pesquisador de religião se preocupe em distinguir estas duas perspectivas de investigação, para que o ensino religioso nas escolas públicas brasileiras supere seus antigos significados e avancem nos dilemas da religião.

Postado por Fernando Tetsuo Miyahira, com autorização de Gilmar Gonçalves da Costa.


quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Características das Fontes Textuais do Novo Testamento

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Entender o cristianismo primitivo é um esforço que exige acompanhar o desenrolar de uma série de fatores paralelos ao longo de muitos séculos, dentre estes fatores, a formação textual cristã. É muito interessante observar o processo de formação textual que ocorre paralelamente ao processo de desenvolvimento político e estrutural da Igreja. Acredito que esse capítulo seja de suma importância para a compreensão deste trabalho como um todo, pois aqui estão as informações documentais, necessárias antes de se iniciar qualquer aprofundamento analítico sobre qualquer assunto.
É certo que as idéias que existem no senso comum a respeito da Bíblia, seus escritos, sua história, suas versões, sua composição, atrapalham demais o entendimento do cristianismo do ponto de vista laico e histórico. Tendo em vista que esse livro é o assentamento de toda a religião cristã, fica claro que ninguém pretende que se questione o que “está escrito”, já que colocar em questão a veracidade e a legitimidade da Bíblia é perigoso para a fé. Seria necessário rever toda a religião ocidental caso uma corrente não ortodoxa viesse a ganhar espaço na opinião pública. Geralmente, as histórias tradicionais que dão significado à tradição cristã, estão impregnadas de lendas. Como sabemos, no princípio das coisas, a história se mistura ao mito, o onipresente “mito da origem”.
Em nossa civilização o mito cristão perdeu sua qualidade explicativa alegórica e se revestiu com o manto da verdade absoluta, inquestionável, tornando-se dogma, pois ele serve como respaldo a uma ordem estabelecida que não deseja mudar. O dogma é a segurança da fé, e interpretar os mitos seria revelar a metáfora do dogma. Mas, se nos dispomos a entender de fato a história da religião que fundou o ocidente, temos que encarar esse problema.
Por isso é necessário fazer uma investigação a respeito dos escritos cristãos, saber como, quando, onde, por quem, e por que foram escritos. Entender o processo pelo qual os livros cristãos foram sendo produzidos e reproduzidos equivale a entender as motivações ideológicas e políticas que dirigiram esse processo. Eis a maneira, que julgo a mais segura, que eu encontrei de compreender o que foi o cristianismo primitivo e sua evolução histórica.
O que chama a atenção inicialmente é o fato que a Bíblia não é um trabalho único, monolítico, mas são vários trabalhos associados. Os livros que compõem a Bíblia, diferente do que afirma e pensam os religiosos, não constituem em si uma unidade teológica perfeita. Em geral os religiosos afirmam que a bíblia possui a condição de “inspirada por Deus”, e que a união de seus livros indicaria uma “harmoniosa Vontade Divina”, organizadora das Escrituras, que transpassa as individualidades dos autores e as singularidades históricas, e unem o conjunto em um Corpus coerente, a “Palavra de Deus”. Essa visão pouco crítica do texto bíblico se mostra por si inconsistente, pois a “inspiração divina” não é um argumento historicamente válido. De fato a Bíblia só conseguiu um status mais ou menos harmônico após muitos séculos de revisão textual. Apesar de este trabalho não entrar no mérito da discussão da Bíblia em si (mas de alguns livros que a compõe), é necessário esclarecer que cada livro, ou conjunto de livros, foram escritos por autores diferentes, em diferentes tempos históricos, em diferentes contextos, em diferentes estilos, sob influências culturais e políticas diferentes, e, conseqüentemente, sob diferentes ópticas teológicas. Quando se trata do Novo Testamento essas dificuldades se alargam bastante, e passamos a trabalhar com várias tradições de um mesmo texto.
O Novo Testamento apresenta quatro evangelhos, quatro versões da vida, ensinamentos, feitos, e paixão do Cristo. Este formato foi historicamente sendo construído, e seu aspecto quádruplo indica uma variedade de tradições orais e textuais que se fundiram em diferentes evangelhos. Apenas o fato de possuirmos quatro versões diferentes da vida e obra de Jesus Cristo, já nos indica que nem tudo era consensual, nem tudo era monoliticamente harmônico como se poderia acreditar. Entender as nuances desses livros, suas características e suas diferenças, ajuda muito a entender e reconstruir a história do cristianismo primitivo.
Entretanto esses quatro evangelhos não são os únicos que foram escritos, e muitos outros evangelhos interessantes, tal como o Evangelho de Tomé, o Evangelho de Pedro, o Evangelho Segundo Felipe, e Evangelho da Verdade, ou o Evangelho de Valentino , poderiam ser estudados como parte do mesmo processo histórico. Apesar de parecer um corpo monolítico, esses quatro evangelhos canônicos possuem diferenças entre si, que só podem ser notadas e desenvolvidas ao se compreender os textos individualmente em seus contextos, e depois comparando-os entre si. Não se busca aqui, entretanto, encontrar um sentido original do texto, mas sim, por meio de indícios, muitas vezes idéias implícitas, ou detalhes a que não se deu muita atenção, poder reconstruir as idéias e intenções que nortearam os processos de formação de tais textos. As discordâncias entre esses quatro textos não são decorrentes de erros posteriores dos copistas, nem exclusivamente de enganos casuais na tradição oral, mas sim principalmente de visões ideológicas diferentes.

Características das Fontes Textuais do Cristianismo

Acredito que, pela dificuldade do assunto, seja necessário, antes de passarmos a tratar das fontes textuais, apresentar alguns esclarecimentos sobre elas. Para podermos acompanhar o desenvolvimento lógico das conclusões acerca das tradições documentais do cristianismo, é necessário estar familiarizado com as seguintes informações:
1- Não há, dentre todos os documentos textuais relativos ao cristianismo primitivo, um único texto que tenha sobrevivido no original. Ou seja, não há um único “autógrafo” preservado nos dias de hoje.
2- As cópias mais antigas remanescentes são todas de períodos muito posteriores ao período em que os documentos foram de fato produzidos, quase sempre mais de 200 anos, e muitas vezes bem mais que isso .
3- Toda a abundante fonte textual cristã, inicia-se abruptamente no início do século III d.C , não existindo nada preservado anterior a isso, a não ser retalhos de manuscritos, pouco importantes para a crítica textual, datados do século II d.C.
4- As datações que estabelecemos aos originais são sempre estimadas, baseadas em referências cruzadas de diversas fontes diferentes, e de variáveis de um mesmo tipo de fonte. Não temos certeza absoluta das datas de composições dos textos, mas devemos sempre usar o bom senso e rejeitar as datas artificiais e dogmáticas demais.
5- Esses manuscritos dispõem-se em dois tipos de escrita: minúsculos e unciais. O manuscrito uncial é mais antigo, escrito todo em letras maiúsculas, e sem separação entre as palavras, o que dificulta muito seu entendimento e reconstrução, mas são certamente os mais valiosos. Os manuscritos minúsculos são escritos em letras maiúsculas e minúsculas, e apresentam espaçamento entre as palavras. Esses representam um desenvolvimento posterior do cristianismo (século VI em diante), e são menos importantes que os unciais.
6- A corrupção textual é um fato. Temos que ter em mente que um documento “original” (se existisse algum à disposição) nunca possuiria a mesma configuração de suas versões posteriores preservadas. Ou seja, os textos não chegaram a nós da maneira como eles eram originalmente, pois foram sendo alterados ao longo de mais de quatro séculos (ou mais). É por isso que é muito complicado inferir informações apenas com base em um apontamento do texto, principalmente se for de textos medievais ou posteriores. Nenhum documento pode ser examinado sem um método crítico.
7- As alterações textuais são de três tipos: acidentais, estilísticas e doutrinárias. De todas essas mudanças, é claro que as mais significativas para o conteúdo do cristianismo, e para o direcionamento da Igreja, foram as mudanças dogmáticas.
8- Os primeiros 100 anos de existência de um documento é geralmente o período de maior alteração textual . Esse é justamente o período do qual não temos nenhuma informação sobre seu desenvolvimento textual (item 2).
9- Geralmente um mesmo documento possui muitas versões diferentes, e quanto mais próximos dos originais, mas discordantes as fontes se tornam.
10- As versões mais antigas e mais recentes de um mesmo documento preservado geralmente discordam, principalmente dos documentos canônicos como os evangelhos.
11- Os manuscritos mais antigos geralmente estão preservados em grego, latim arcaico, copta ou armênio. Porém, manuscritos gregos são usados como fonte relativamente confiável em comparação a manuscritos em outras línguas.
12- Existem dois tipos de materiais nos quais estão dispostos: papiro e pergaminho. O papiro é produzido em fibra vegetal, e muito usado nos primeiros séculos. O papiro foi substituído pelo pergaminho (couro animal) conforme a Igreja tornou-se rica e poderosa, principalmente com a oficialização do cristianismo pós-Constantino. Este imperador encomendou, em 331 d.C cinqüenta manuscritos da Bíblia para serem usados nas igrejas de Constantinopla, todos em pergaminho . A escrita em pergaminho representa, portanto, essa “nova fase” da Igreja, que conduz a um desenvolvimento teológico e estilístico mais aproximado da tradição ortodoxa . No Egito o papiro ainda permaneceu por alguns séculos, mas foi por fim completamente substituído.
13- Toda a Bíblia atual deriva do Textus Receptus de Erasmo de Roterdã. Esse texto foi traduzido a partir de manuscritos gregos medievais, posteriores ao século XII, que são o ápice de toda a revisão textual ortodoxa, e conseqüentemente pouco semelhantes aos manuscritos mais antigos, que por sua vez são pouco semelhantes aos originais.
Com base nesse prévio entendimento do estado e das condições das fontes, imagino ser possível iniciar uma análise coerente sobre o cristianismo primitivo.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

O Imaginário Coletivo brasileiro e Nossa Senhora Aparecida



A formação da nação brasileira é tema de inúmeras pesquisas, dentro e fora de nosso país. Muitos trabalhos foram feitos, tratando principalmente sobre antropologia e sociologia. Estes trabalhos vão desde a publicação de Raízes do Brasil, pelo grande historiador Sérgio Buarque de Holanda até debates sobre a herança genética européia e africana, que dá certa peculiaridade ao povo brasileiro. Porém, assunto pouco tocado é o papel da religião na formação do imaginário brasileiro.

Se regressarmos até meados do século XVIII, podemos perceber muitos movimentos sociais latino-americanos, pertinentes ao interesse do povo, ou uma parte deles, de se libertarem da colonização européia, instalada desde finais do século XV. No Brasil não foi diferente. Tais movimentos dão origem á teorias locais sobre a “nacionalidade”, ou seja, a identidade do povo em questão (“o que é ser um mexicano, um argentino, ou um brasileiro, afinal?”). Sabemos que, no imaginário brasileiro, temos como marco histórico da independência brasileira no século XIX, a proclamação de D. Pedro I e seu famoso “Independência ou Morte”, o que igualmente traz a errônea idéia de que a nação brasileira começou a se formar a partir deste momento. Porém, se observarmos a América Latina como um todo, podemos perceber um movimento peculiar centralizado na classe mais baixa destes povos, o que podemos chamar de “cultos marianos”. Tomando como exemplo a aparição da Virgem Maria para a Juan Diego, um índio nativo da região do México, no século XVI, temos o início do culto á Nossa Senhora de Guadalupe, ou a Virgem de Guadalupe, nome dado a esta imagem da Virgem. Pelos relatos, uma "Senhora do Céu" apareceu a Juan Diego, identificou-se como a mãe do verdadeiro Deus, fez crescer flores numa colina semi-desértica em pleno inverno, as quais Juan Diego devia levar ao bispo, que exigira alguma prova de que efetivamente a Virgem havia aparecido. Juan foi instruído por ela a dizer ao Bispo que construísse um templo no lugar, e deixou sua própria imagem impressa milagrosamente em seu tilma, em um tecido supostamente de pouca qualidade (feito a partir do cacto), que deveria se deteriorar em 20 anos, mas que não mostra sinais de deterioração até ao presente. Seu culto como padroeira local inicia-se em 1737.

Este exemplo é apenas um de outros que se tornaram bem comuns na América Latina. Se no México nós temos a Nossa Senhora de Guadalupe, na Argentina temos Nossa Senhora de Luján, padroeira do país, tal como do Uruguai e Paraguai, da qual teve seu culto iniciado também no século XVIII, mais precisamente em 1755. Porém, o ponto que nos interessa é no nosso próprio país, como o culto á Nossa Senhora Aparecida, iniciando-se em 1734 com a construção da primeira capela dedicada a santa.

Sua história tem início em 1717. Desejando obter a melhor pescaria que pudessem, os pescadores Domingos Garcia, Filipe Pedroso e João Alves lançaram as suas redes no rio Paraíba do Sul. Depois de muitas tentativas infrutíferas, descendo o curso do rio chegaram a Porto Itaguaçu, em 12 de outubro. Já sem esperança, João Alves lançou a sua rede nas águas e apanhou o corpo de uma imagem de Nossa Senhora da Conceição sem a cabeça. Em nova tentativa apanhou a cabeça da imagem. Envolveram o achado em um lenço. Daí em diante, os peixes chegaram em abundância para os três pescadores. O culto á Nossa Senhora Aparecida é tão importante para a população, que se chegou ao ponto de ser criada uma igreja para os devotos, que aumentavam significadamente ao longo do tempo. Devido a isso, após reformas e construção de uma nova basílica, foi fundada uma cidade inteiramente dedicada á santa. Aparecida do Norte é um município do estado de São Paulo, na microrregião de Guaratinguetá. É também um dos 29 municípios paulistas considerados “estâncias turísticas” pelo Estado de São Paulo, mostrando que o culto á Virgem Aparecida foi difundida por todo o território brasileiro, e até no exterior. Tal status garante a esses municípios uma verba maior por parte do Estado para a promoção do turismo regional.

Entretanto, o que chama a atenção é um dos fatores que faz com que Nossa Senhora Aparecida seja uma das santas mais peculiares do mundo é exatamente a sua imagem: é uma santa mulata. Assim como o culto amriano de Guadalupe, Aparecida pode ser considerada a própria encarnação da imagem do brasileiro. Ela mostra, tal como seu povo, a vasta miscigenação racial e principalmente a enorme variedade cultural presente no Brasil, até os dias de hoje. Aqui, influência de três povos distintos: 1) Influências dos portugueses colonizadores em sua devoção á Nossa Senhora da Conceição, padroeira de reinos e senhorios portugueses (colônias) e representando o mundo triunfal do catolicismo no Brasil (com início de veneração em Minas Gerais); 2) Influências de negros africanos, vindos para o Brasil como escravos e devotos de Nossa Senhora do Rosário, presente nas caravelas negreiras e introduzida pelos missionários dominicanos na áfrica, por volta de 1570, no atual Congo, tal como a crença original africana dos orixás, de certos grupos tribais ; e 3) Influências dos nativos brasileiros e seus elementos folclóricos, como a Mãe D’água, ou Iara, a deusa das águas na crença indígena brasileira. Enfim, tento mostrar aqui que grande parte da contribuição para a formação cultural brasileira vem exatamente desta fusão no campo religioso, ou seja, o fetichismo e elementos animistas indígenas e negros com a crença católica dos portugueses.

por Fernando Tetsuo.