quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Espiritualidade e Religiosidade: Articulações

Artigo escrito pelo Prof. Dr. Ênio Brito Pinto, do programa de pós-graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Univerisade Católica de São Paulo (Puc-SP) para a revista REVER: Revista de Estudos da Religião, da mesma universidade.

Quero começar detalhando o caminho que trilharei neste texto: entendo que o termo ‘espiritualidade’ ainda não tem uma conotação tão clara em Psicologia como seria desejável, o que, me parece, ser uma deficiência que precisa ser corrigida. Debater o que se pode entender por ‘espiritualidade’ em Psicologia é, assim, o foco desse meu trabalho. Escolhido o foco, há que se definir uma estratégia para abordá-lo. Assim, passarei por três importantes áreas da Psicologia para iluminar da melhor forma possível o enfoque adotado: falarei da Psicologia da Personalidade, da Psicologia do Desenvolvimento e da Psicologia da Religião, para finalizar fazendo algumas poucas considerações sobre como tudo o que levantarei aqui pode auxiliar o psicoterapeuta em seu trabalho clínico.

Há, na Psicologia, alguns termos que são razoavelmente inequívocos, quer dizer, há alguns termos que todo psicólogo, independentemente de sua abordagem, é capaz de definir com uma boa dose de precisão. Insight, condicionamento, transferência e contratransferência, complexo de Édipo, persona e sombra, objeto transicional, intencionalidade, autoatualização, hierarquia de necessidades, dentre outros, figuram nesse rol. Há outros termos que não são assim tão consensuais: self, inconsciente, liberdade e espiritualidade são alguns que compõem essa segunda lista. Quero ver se daqui a pouco, ao fim da leitura, poderemos fazer o termo ‘espiritualidade’ mudar de lista. Para isso, vou buscar definir da maneira mais clara o que a espiritualidade é e o que ela não é do ponto de vista psicológico, além de diferenciá-la da religiosidade, pois não é rara, no meio dos psicólogos, e mesmo no meio dos religiosos, uma certa confusão entre uma e outra.

Essa certa confusão que há entre os psicólogos quanto ao tema da espiritualidade tem uma série de motivos, dentre os quais se destacam especialmente dois: primeiro, o pouco espaço que as faculdades de Psicologia dedicam ao tema da religião e até à Psicologia da Religião, muito mais desenvolvida na Europa e nos EUA do que no Brasil; segundo, como bem aponta Marília Ancona-Lopez, há enorme dificuldade para o psicólogo

inserir as suas experiências espirituais e religiosas em um universo acadêmico e profissional que as aceite, integre e compartilhe, o que acaba por gerar, nos psicólogos, uma dificuldade para desenvolver uma ação psicológica congruente consigo mesmo no que diz respeito ao tema da espiritualidade e da religião. (2005:153)

Espiritualidade e religiosidade são temas próximos, mas indicam fenômenos diferentes. Vou continuar essa nossa conversa explorando a diferenciação entre espiritualidade e religiosidade. E me apoiarei, a princípio, na Psicologia da Personalidade para tentar esclarecer as diferenças entre esses dois conceitos, tomando todo o cuidado para evitar uma postura reducionista, ou seja, eu sei que trago um ponto de vista, o qual não é o único quanto a este tema. Dizendo de outro modo: o que trago hoje é uma contribuição que tem como objetivo tentar uma melhor clareza no campo da Psicologia quando se fala desses temas tão importantes como a espiritualidade e a religiosidade.

1. Então, vamos à Psicologia da Personalidade. Pensando em termos de personalidade, a espiritualidade é estrutura e a religiosidade é processo. Vou explicar. O campo do estudo da personalidade trata, fundamentalmente: 1) da pessoa como um todo e 2) das diferenças individuais. Com isso, o que se procura é compreender o comportamento humano através da maneira como cada indivíduo funciona na interação dos diversos aspectos que compõem seu todo, seu jeito complexo de ser.

Gilles Delisle, gestaltista canadense, caracteriza a personalidade como

um específico e relativamente estável modo de organizar os componentes cognitivos, emotivos e comportamentais da própria experiência. O significado (cognitivo) que uma pessoa atribui aos eventos (de comportamento) e os sentimentos (emocional) que acompanham esses eventos permanecem relativamente estáveis ao longo do tempo e proporcionam um senso individual de identidade. Personalidade é esse senso de identidade e o impacto que ele provoca nas outras pessoas. (1999:19)

Grosso modo, podemos compreender o ser humano como um ser animobiopsicocultural, ou seja, um ente composto por três níveis articulados, o corporal, o psíquico e o espiritual, um ente que vive em uma cultura, a qual é configurada social, geográfica e historicamente, ou seja, a cultura compõe um campo que configura o ser humano, embora não o determine. Com isso, estou dizendo que há alguns dados que são estruturais na personalidade de cada pessoa, dados esses que são entrelaçados por uma certa intencionalidade na composição do sujeito humano. Fazem parte da estrutura da personalidade humana, dentre outros aspectos, a sexualidade, as disposições genéticas, a possibilidade da emoção, do sentimento e do senso de identidade, a possibilidade da reflexão profunda sobre si, sobre a existência e sobre o mundo, a possibilidade da hierarquização dos valores. Nesse modo de pensar, a corporeidade está especialmente representada pelas disposições genéticas e pela sexualidade, compondo, com a intencionalidade, o corpo vivido; o psiquismo está especialmente presente na possibilidade de se lidar com as emoções e os sentimentos, compondo a apropriação da realidade e o senso de identidade; a espiritualidade está especialmente presente na possibilidade da hierarquização dos valores, nas decisões, na reflexão profunda sobre a existência e, fundamentalmente, na possibilidade – eu diria até na necessidade – que tem o ser humano de tecer um sentido para a sua vida, de ter um bom motivo para continuar vivendo. Por isso é que eu afirmei, há pouco, que a espiritualidade tem lugar na estrutura da personalidade humana.

Ao estudar a Psicologia da Personalidade, aprendemos que há, na personalidade, estabilidade, persistência, constância. Há também mudança, plasticidade, alterações ao longo do tempo e a partir das experiências. Também se pode depreender que a personalidade é um sistema, ou seja, é um todo complexo e dinâmico. Um sistema que pode ser percebido e estudado principalmente através do comportamento.

Esse sistema/personalidade tem, essencialmente, duas partes: estrutura e processo. Dizendo melhor ainda: esse sistema/personalidade se caracteriza por ser um complexo relacionamento entre estrutura e processo.

A estrutura da personalidade é o que é constante. São os padrões reincidentes, ou, no dizer de Messick,

são componentes da organização da personalidade relativamente estáveis, usados para explicar as semelhanças reincidentes e consistências do comportamento ao longo do tempo e através das situações. (apud PERVIN 1978:555)

É a estrutura que possibilita uma certa previsibilidade na vida de cada pessoa e que possibilita também o autoconhecimento.

Em constante diálogo com a estrutura está o processo, o outro componente do sistema/personalidade. Processo é o que se inova e se renova, é o momentâneo ou circunstancial. É o fluido. O processo traz a possibilidade da mudança, da surpresa, da inovação e pode provocar, ao longo do tempo, modificações em aspectos da estrutura ou na maneira de expressão de aspectos da estrutura da personalidade.

Estrutura e processo são igualmente importantes no sistema/personalidade e uma pessoa será, do ponto de vista psicológico, tão mais saudável quanto melhor for o diálogo entre esses dois fundamentos de sua personalidade. Esse diálogo permitirá que essa pessoa possa se modificar constantemente ao longo da existência, permanecendo sempre a mesma pessoa. Se pensarmos no famoso aforismo de Sócrates, o “conhece-te a ti mesmo”, veremos que, para ele, a estrutura é o ponto mais importante; se pensarmos na resposta do Zen a Sócrates, “não tu mesmo”, veremos que aí a ênfase está colocada no processo. Do ponto de vista da Psicologia da Personalidade, somos estrutura e processo, sempre novos e potencialmente modificáveis, sempre os mesmos, embora sempre diferentes, ou seja, se o ideal é um bom padrão de autoconhecimento, igualmente ideal é que a pessoa não perca a consciência de que nunca está pronta, de que a vida traz contínua possibilidade de renovação e de mudança.

Como já disse, no meu modo de ver, espiritualidade tem relação com a estrutura da personalidade, ao passo que religiosidade tem relação com processo. Assim, não se deve identificar puramente religiosidade e espiritualidade porque pode haver experiências de profundo sentido espiritual que não têm qualquer conotação religiosa. Assim, se a espiritualidade é inerente ao ser humano, a religiosidade não o é, uma vez que se há pessoas “arreligiosas”, não é possível uma pessoa não-espiritual. Se a espiritualidade é parte integrante da personalidade, a religiosidade é parte acessória, embora importante para a maioria das pessoas, especialmente, mas não unicamente, por ser precioso meio de inserção comunitária e cultural.

De todo modo, a espiritualidade não tem necessariamente relação com a religião. Para Giovanetti, o termo “religiosidade” “implica a relação do ser humano com um ser transcendente”, ao passo que o termo “espiritualidade” “não implica nenhuma ligação com uma realidade superior” (2005:136). Para esse autor, a espiritualidade significa a possibilidade de uma pessoa mergulhar em si mesma. Ele completa:

“o termo ‘espiritualidade’ designa toda vivência que pode produzir mudança profunda no interior do homem e o leva à integração pessoal e à integração com outros homens” (2005:137). A espiritualidade tem relação com valores e significados: “o espírito nos permite fazer a experiência da profundidade, da captação do simbólico, de mostrar que o que move a vida é um sentido, pois só o espírito é capaz de descobrir um sentido para a existência” (2005:138).

Farris acrescenta outra variável importante na definição do que seria a espiritualidade: “a espiritualidade é a construção, ou descoberta de significado no meio de relacionamentos, ou interações entre a pessoa, o outro e o mundo.” (2005:165)

Para Valle, a espiritualidade não se opõe ao material, corpóreo, mundano; não rejeita ou nega a natureza; não tem nada a ver com a fuga do mundo; está encarnada na vida de cada pessoa e sua época; “expressa o sentido profundo do que se é e se vive de fato”; precisa de silêncio reflexivo e de contemplação; “assume o corpo e permite que o homem ultrapasse o nível biológico e emocional de suas vivências, mesmo das mais elevadas e sublimes” (2005:102).

Embora a espiritualidade seja característica de todo ser humano, ela pode ser cultivada ou não. Uma das maneiras, mas, nem de longe a única maneira através da qual a espiritualidade pode ser cultivada, é através da religião. Nesse sentido, podemos dizer que a religião é posterior à espiritualidade e uma manifestação dela.

Embora seja difícil a delimitação precisa do que seja religião, há alguns pontos que são bastante presentes: a religião é um sistema de orientação e um objeto de devoção; os símbolos religiosos evocam sentimentos de reverência e de admiração, além de estarem, em geral, associados a um ritual; na religião, encontramos também sentimentos, atos e experiências humanas em relação ao que se considera sagrado. No grande espectro de definições que podem ser levantadas para se entender o que é religião, encontrar-se-ão alguns elementos comuns, como a presença de mitos (especialmente mitos de origem e de fim), de ritos, de símbolos, da cultura e da congregação social de pessoas, além da associação que a religião pode ter com a espiritualidade, sem esquecer das normas morais sobre como lidar com a vida, com o mundo e com as pessoas.

Originária da religião, a religiosidade pode ser entendida como uma experiência pessoal e única da religião, ou seja, “a face subjetiva da religião”, como afirma Valle (1998:260). A religiosidade pode ser uma maneira da espiritualidade se manifestar, mas não é a única maneira, ou seja, do mesmo modo que há pessoas de intensa religiosidade e pouca espiritualidade, há pessoas de nenhuma religiosidade, como um ateu ou um agnóstico, por exemplo, que podem manifestar uma intensa espiritualidade. Em outros termos: a religiosidade implica uma referência ao transcendente, ao passo que a espiritualidade implica uma referência ao sentido. Elas podem se encontrar, mas não são a mesma coisa: como já afirmei, existe a possibilidade de que alguém viva uma espiritualidade arreligiosa, isto é, uma espiritualidade que não se liga a nenhuma crença religiosa (GIOVANETTI 2004: 11). Quando se dá o encontro entre a espiritualidade e a religiosidade, o ser humano se vê diante de indagação sobre o sentido último da existência. A espiritualidade, por si só, busca o sentido para a existência na existência, não necessariamente o sentido último, preocupação maior da religiosidade. Se a espiritualidade me faz buscar o sentido para a minha vida, no encontro com a religiosidade esta busca abarca também o além da vida, o último.

O fato desse encontro se dar não caracteriza necessariamente uma experiência de crescimento. A religiosidade tanto pode ser uma fonte de força para as pessoas como pode, também, ser um refúgio para a fraqueza, sendo que nenhuma dessas duas possibilidades é boa ou ruim por si mesma. Como o ser humano tem capacidade tanto para o bem quanto para o mal, a religiosidade pode, por um lado, corroborar a dignidade pessoal e o senso de valor, promover o desenvolvimento da consciência ética e da responsabilidade pessoal e comunitária, ou, por outro lado, a religiosidade pode diminuir a percepção pessoal de liberdade, pode gerar uma crença de que não seja tão necessário o cuidado pessoal, e pode facilitar a evitação da ansiedade que geralmente acompanha o enfrentamento autêntico das possibilidades humanas. Com isso quero dizer que a relação e o diálogo entre a espiritualidade e a religiosidade não é necessariamente harmonioso: a religiosidade pode ser consoante com a espiritualidade e, assim, constituir possibilidade de busca de sentido e de aprofundamento em si e no mundo, mas a religiosidade pode ser também fonte de alienação, de fuga do espiritual, de superficialidade existencial. Dependendo da maneira como é vivida, a religiosidade pode encobrir a espiritualidade, pode até sufocá-la, como é o caso dos idólatras, dos fanáticos religiosos, das pessoas supostamente ingênuas que não conseguem sequer criticar sua religião, assim como é o caso das pessoas que não participam comunitária ou ecologicamente do mundo.

2. Agora, para aprofundarmos um pouco melhor nossa compreensão dessa relação entre a espiritualidade e a religiosidade, vamos pedir ajuda à Psicologia do Desenvolvimento.

Só para lembrar: o estudo da Psicologia do Desenvolvimento tem como foco o desenvolvimento humano em toda a sua vida, com maior atenção para os aspectos físico-motor, intelectual, afetivo-emocional e social (BOCK 1994: 80). Nesse estudo, considera-se toda a personalidade da pessoa, ou seja, seus aspectos corporais, psíquicos, espirituais e culturais, entendendo que a pessoa tende a evoluir de um nível menos complexo para níveis progressivamente mais complexos de organização. A noção de autoatualização, tão cara para os gestalt-terapeutas, é levada em conta pela Psicologia do desenvolvimento. (FITZGERALD e STROMMEN 1975: 13)

Nesse trajeto evolutivo que caracteriza o desenvolvimento humano, também a espiritualidade e a religiosidade podem evoluir, de modo que não é estranho podermos falar em uma espiritualidade e em uma religiosidade imaturas ou maduras. Para tanto, é preciso que a gente se lembre de que o amadurecimento não se dá pela simples passagem pelo tempo, mas pela forma como se passa pelo tempo. Passar pelo tempo é inevitável, amadurecer nesse período é possibilidade, não decorrência natural. Como lembra Valle

não basta a “maturação” (mais ligada aos condicionamentos psicofisiológicos) para se ter o “amadurecimento” que só se explica no plano do propriamente humano e tem necessariamente a ver com a criatividade, a arte, a estética e – de maneira extremamente complexa – com a espiritualidade. (2005:107)

Também não é por outro motivo que Frankl afirma que se

o físico é dado pela hereditariedade – o psíquico é dirigido pela educação; o espiritual, contudo, não pode ser educado, tem que ser realizado – o espiritual “é” só na auto-realização, na “realidade da realização” da existência. (1978: 131)

Na Gestalt-terapia, como, de resto, em todo o movimento humanista em Psicologia, a compreensão de como se dá o desenvolvimento humano se baseia na crença de que o ser humano tem uma tendência para a autorrealização e a para o crescimento, um potencial que se realizará se forem dadas as condições suficientemente adequadas para tanto. A espiritualidade - a busca do sentido existencial - e a religiosidade - a busca pelo transcendente - são alguns dos pontos através dos quais o desafio do crescimento estará presente, ou seja, a maneira como uma pessoa vive sua espiritualidade e sua religiosidade também se modifica à medida que a pessoa se modifica em seu caminho de amadurecimento.

Amatuzzi, ao fazer uma pesquisa na qual buscava uma descrição fenomenológica da experiência religiosa das pessoas, constatou que

embora manifestassem uma estrutura comum de experiência, (essas pessoas) mostravam níveis diferentes de maturidade religiosa. E mais. Esses níveis tinham uma íntima relação com o nível de maturidade humana em geral. (2001:25)

Ampliando sua pesquisa em busca da compreensão de um possível desenvolvimento religioso, Amatuzzi chega à idéia de que no desenvolvimento humano há, basicamente, oito desafios centrais, dois dos quais nos interessam mais agora, por terem conexão mais estreita com a espiritualidade e a religiosidade: a) “passar do tédio da onipotência para a alegria da liberdade, redescobrir um sentido pessoal, ser livre”; b) “passar das perdas e apegos ao desprendimento radical, encontrar o além de si, entregar-se.” (2001:34)

Esses dois desafios se dirigem à espiritualidade, da forma como a estamos compreendendo aqui. Eles têm relação com a busca de sentido existencial e com a procura de uma hierarquia de valores. O primeiro, “passar do tédio da onipotência para a alegria da liberdade”, denota a possibilidade de a espiritualidade vencer um de seus maiores inimigos, a onipotência, pois a espiritualidade viceja somente em meio à dúvida e à confiança, fenecendo quando diante de certezas. Isso porque a espiritualidade é inquietação, é curiosidade, é contínua tecelagem de sentido em meio às tramas das circunstâncias. A certeza, mãe da idolatria, é um poderoso veneno contra a espiritualidade (e também contra a religiosidade), reduzindo-a a passividade, a obediência cega, a apatia, gerando radicalismos ou tédio, nutrindo a falta de sentido e a indiferença, fenômenos infelizmente tão comuns em nossos tempos pós-modernos.

O segundo desafio, “passar das perdas e apegos ao desprendimento radical, encontrar o além de si, entregar-se”, pode ser entendido como o projeto final do desenvolvimento da espiritualidade e também da religiosidade, marcando um paradoxal ponto de encontro último dessas duas qualidades humanas. Isso porque desprender-se, desapegar-se, entregar-se, vislumbrar o além de si, são atos que compõe a vivência da fé. O paradoxo está em que essa fé tanto pode ser religiosa quanto arreligiosa, não importa muito. O que importa é que ela traga em seu bojo a possibilidade do sentido, a percepção do todo, do qual cada um de nós é ínfima e essencial parte. Se junto da fé vier a possibilidade do sentido último, tanto melhor.

Fritz Perls define o amadurecimento como “um processo contínuo de transcender o suporte ambiental e desenvolver o auto-suporte, o que significa uma redução crescente das dependências” (1997: 11), ou seja, é um fenômeno baseado no crescimento interligado do auto-conhecimento, da autoconfiança e da fé. O autoconhecimento é construção-desconstrução-construção paulatina e cotidiana do reconhecimento dos limites, pessoais e exteriores, sempre móveis. A autoconfiança se fundamenta na sensação de se estar em casa no mundo e se fundamenta também na autonomia e no autoconhecimento, levando à fé, matriz do sentido e do sentido último, finalidade limite da espiritualidade. Autoconhecimento, autonomia, autoconfiança e fé só são possíveis e só têm sentido no contínuo contato e na contínua troca com os outros.

Como bem afirma Valle

a espiritualidade adulta supõe conhecimento e aceitação dos próprios limites e possibilidades. Não é um ato de resignação e sim uma atitude corajosa e humilde de alguém que sabe que sua vida é um projeto aberto ao ser mais, ao comungar mais, ao cuidar do que precisa ser cuidado. É uma experiência de despojamento que se coloca nas antípodas do poder, da autossuficiência, e do imediatismo egocêntrico. (2005:105).

Para que a espiritualidade seja tudo isso, ela precisa ter um vigoroso combustível. Assim, podemos entender que o que sustenta a espiritualidade é a fé. Mas não necessariamente a fé religiosa. Note que falo de fé, não de crença em dogmas religiosos, em ritos ou em celebrações - a crença pode ser a forma de substancialização da fé para algumas pessoas, mas ela não é a fé. Às vezes, até pelo contrário, a crença encobre a ausência de fé, na medida em que a crença pode dar parâmetros externos à pessoa, parâmetros esses que nunca alcançarão a qualidade dos parâmetros internos e intensos que a fé traz.

Não falo da fé em determinado deus ou deuses, que este é o terreno da crença. Falo da fé na vida, da fé no significado da presença de cada pessoa em sua circunstancialidade histórica, física e cultural. Falo da fé na riqueza que a vida de cada pessoa representa para a totalidade. É esta fé que abre o coração para o amor, para o compartilhamento, para os encontros mais profundidade. A vivência da fé é um dos focos dos estudos da Psicologia da Religião. Depois de me embasar na Psicologia da Personalidade para delimitar o lugar da espiritualidade e da religiosidade no ser humano, depois de me apoiar na Psicologia do Desenvolvimento para confirmar que é possível que a espiritualidade (e a religiosidade) de uma pessoa evolua ao longo da existência, é à Psicologia da Religião que peço apoio agora para o último dos três destaques nessa nossa conversa sobre a espiritualidade humana.

A Psicologia da Religião ainda é uma área pouco conhecida e pouco explorada pelos psicólogos brasileiros, que ainda, em sua maioria, não perceberam a enorme fertilidade desse campo. Vou definir, muito sucintamente, as principais características desse campo de estudos da Psicologia.

Para Massih, o objeto de estudo da Psicologia da Religião é a experiência religiosa, de modo que se pretende “entender o fenômeno religioso desde as motivações, experiências, atitudes e dinâmicas afetivas e cognitivas presentes nos comportamentos religiosos” (2007:6-7). Mario Aletti entende que a Psicologia da Religião, é “orientada para o funcionamento da psique diante da religião” (2006:1). Para Valle, a Psicologia da Religião, ao estudar por que e como alguns fenômenos religiosos acontecem e são vivenciados psicologicamente por um sujeito,

indaga sobre a estrutura psicológica que está por trás das formas de vivência e experiência religiosa. [...] A psicologia da religião vê como sua tarefa descrever e “explicar” psicologicamente a estrutura e a dinâmica do agir religioso do ser humano. (1998:51)

Belzen defende que o propósito da Psicologia da Religião é usar os instrumentos psicológicos (teorias, conceitos, insights, métodos e técnicas) para analisar e entender a religião. A Psicologia da Religião deve ser, essencialmente, neutra diante de seu objeto: “ela não pretende promover nem combater a religião, apenas analisá-la e entendê-la.” (2006:24) Dessa forma, ela não é uma Psicologia religiosa, da mesma maneira que também a chamada Psicologia Pastoral não pode ser qualificada como um Psicologia da Religião.

Do meu ponto de vista, fazem parte do campo da Psicologia da Religião, além da espiritualidade e da religiosidade, a religião enquanto campo, bem como compreensões acerca da própria religião, com seus mitos, ritos e símbolos, compreensões acerca das instituições religiosas e de seus componentes, sem esquecer ainda que a Psicologia da Religião tem também o que acrescentar quando se trata de compreender e discutir a moral religiosa.

Embora Geraldo Paiva (2005:43) defenda que se separe a Psicologia da Espiritualidade da Psicologia da Religião, pois espiritualidade e religião são coisas diferentes e merecem duas formas diferentes de olhar através da Psicologia, são tantas as aproximações entre os dois fenômenos que me parece que cabe, sim, um apoio na Psicologia da Religião quando estudamos a espiritualidade humana. Penso nisso especialmente quando reflito sobre a Psicologia clínica, a prática psicoterapêutica, que precisa de alguns aportes da Psicologia da Religião, como se pode depreender do alerta de Hycner:

O espiritual propicia um contexto que ajuda a tornar a aparente insignificância de nossas ações individuais mais significativas. Muitas pessoas procuram a terapia porque sentem que sua vida não tem sentido. Viver a vida como a incorporação do espiritual, torna-a ao menos em parte, mais significativa. O espírito humano só pode crescer se for nutrido por algo muito maior que ele mesmo. Nossa limitação humana nos abre para o ilimitado. (1995:88)

Essa abertura para o ilimitado de que fala Hycner é o encontro fértil entre a espiritualidade humana e a totalidade. Pode ser também, mas não precisa ser, o lugar do encontro profundo da espiritualidade com a religiosidade. Aliás, essa é a maneira mais comum que encontramos: a espiritualidade expressa enquanto religiosidade. Acredito que isso se dê porque somos seres de relação e porque uma das principais funções da religião é a congregação de pessoas.

Enfim, para irmos finalizando, há uma última questão que me parece importante abordar agora: para que tudo isso? Para que serve essa distinção mais acurada entre espiritualidade e religiosidade? Por ora, penso em, pelo menos, três motivos pelos quais toda essa teorização faz sentido. Antes de apontá-los, quero lembrar que estamos aqui lidando com construtos, com dois construtos, espiritualidade e religiosidade. Os construtos são construções culturais desenvolvidas a fim de possibilitar uma compreensão mais eficaz de determinados fenômenos. O construto é uma redução, é algo que possibilita que se estude um fenômeno de modo a compreender da melhor maneira possível esse fenômeno.

Então, o uso desses dois construtos, espiritualidade e religiosidade, nos possibilita alguns ganhos. Primeiro, no campo acadêmico, conceitos mais esclarecidos e mais generalizados podem servir melhor para a comunicação entre os estudiosos, prevenindo equívocos e debates estéreis, possibilitando pesquisas mais úteis socialmente. Segundo, no campo religioso, a diferenciação mais clara entre espiritualidade e religiosidade possibilita uma maior tolerância religiosa, uma melhor convivência entre as diversas religiosidades. Terceiro, no campo das psicoterapias, essa distinção entre os dois fenômenos possibilita ao psicoterapeuta um suporte melhor para o diagnóstico de seu cliente, pois, distinguindo com clareza a religiosidade da espiritualidade, o terapeuta, na busca da compreensão de seu cliente, ficará mais atento à maneira como seu cliente está vivendo sua religiosidade, quando ela existe, ou seja, ficará mais atento ao fenômeno mais profundo e mais significativo, a espiritualidade, sem descuidar, é claro, da possível forma de expressão dessa vivência, a religiosidade.

Isso quer dizer que, se num processo psicoterapêutico a religiosidade tem que ter vez, voz, espaço, ouvidos, atenção, presença, também – e especialmente – a espiritualidade deve ser acolhida. Deve ter especial acolhida, na medida em que ela é a raiz da religiosidade. Ao mesmo tempo, é ela, a espiritualidade, que dá limites para a atuação do psicoterapeuta. Nosso papel, enquanto psicoterapeutas, é acolher e ajudar o ser humano como um todo, sua espiritualidade inclusive, até o ponto em que ela, a espiritualidade, componha um diálogo delicado, respeitoso, franco e poético com o sentido da existência. Uma vez estabelecido e consolidado esse diálogo, o que nos resta é humildemente nos recolhermos, nutridos pela deliciosa sensação do dever cumprido, para que nosso cliente possa percorrer sozinho o caminho da integração com o todo, da universalidade e da comunidade. Paradoxalmente, o caminho e o lugar da mais necessária e profunda solidão.

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quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Interações entre Ciência e Religião

Entrevista feita pelos alunos de pós-graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo com o Prof. Dr. Frank Usarski (do próprio programa), em Julho de 2002.

Como o senhor define religião?

R: O que nós chamamos de “religião” tem se manifestado, no decorrer da história e em todas as partes do mundo, em diversificações e diferenças múltiplas. De acordo com essa complexidade não considero adequado pensar em uma definição fechada de religião e opto por um conceito aberto capaz de superar um entendimento pré-teórico que generaliza fenômenos religiosos, sobretudo os de origem cristã, com os quais nós estamos culturalmente acostumados. Isso é somente necessário por que, por exemplo, para chineses, hindus e muçulmanos nem existem sinônimos em suas línguas que correspondam exatamente com nosso termo religião.

A partir dessas considerações meu conceito de religião contém quatro elementos:

Primeiro, religiões constituem sistemas simbólicos com plausibilidades próprias.

Segundo, do ponto de vista de um indivíduo religioso, a religião caracteriza-se como a afirmação subjetiva da proposta de que existe algo transcendental, algo extra-empírico, algo maior, mais fundamental ou mais poderoso do que a esfera que nos é imediatamente acessível através do instrumentário sensorial humano.

Terceiro, religiões se compõem de várias dimensões: particularmente temos que pensar na dimensão da fé, na dimensão institucional, na dimensão ritualista, na dimensão da experiência religiosa e na dimensão ética.

Quarto, religiões cumprem funções individuais e sociais. Elas dão sentido para a vida, elas alimentam esperanças para o futuro próximo ou remoto, sentido esse que algumas vezes transcende o da vida atual, e com isso tem a potencialidade de compensar sofrimentos imediatos. Religiões podem ter funções políticas, no sentido ou de legitimar e estabilizar um governo ou de estimular atividades revolucionárias. Além disso, religiões integram socialmente, uma vez que membros de uma comunidade religiosa compartilham a mesma cosmovisão, seguem valores comuns e praticam sua fé em grupos.

Como o senhor define ciência?

R: Ciência é uma maneira específica de se aproximar a “realidade” e de adquirir conhecimento sobre ela. De acordo com o princípio de divisão de trabalho, ciências diferentes têm seus enfoques particulares, ou seja, elas são especializadas em investigar certos segmentos da “realidade”. Para disciplinas como a Ciência da Religião é preciso que a “realidade” científica se restrinja à esfera empírica. Em outras palavras: O que conta como “realidade” são somente aquelas camadas da existência que são extraídas da observação. Esta observação pode ser direta (através dos sensos inclusive suas ampliações artificiais) ou indireta (por exemplo a partir de uma dedução com base em uma estatística). Temos que lembrar que ciência é um empreendimento coletivo. A vida acadêmica se organiza em sociedades científicas. O cientista individual faz parte de um conjunto de outros cientistas que se comprometem com as mesmas regras epistemológicas, que se referem ao mesmo vocabulário de termos técnicos e que têm como pressuposto os mesmos pontos de partida.

O que é Ciência da Religião?

R: Ciência da Religião é a disciplina empírica que investiga sistematicamente religião em todas as suas manifestações. Um elemento chave é o compromisso de seus representantes com o ideal da neutralidade frente aos objetos de estudo. Não se questiona a “verdade” ou a “qualidade” de uma religião. Do ponto de vista metodológico, religiões são “sistemas de sentido formalmente idênticos”. É especificamente este princípio metateórico que distingue a Ciência da Religião da Teologia.
O objetivo da Ciência da Religião é fazer um inventário, o mais abrangente possível, de fatos reais do mundo religioso, um entendimento histórico do surgimento e desenvolvimento de religiões particulares, uma identificação e seus contatos mútuos, e a investigação de suas inter-relações com outras áreas da vida. A partir de um estudo de fenômenos religiosos concretos, o material é exposto a uma análise comparada. Isso leva a um entendimento das semelhanças e diferenças de religiões singulares a respeito de suas formas, conteúdos e práticas. O reconhecimento de traços comuns do cientista da religião, permite uma dedução de elementos que caracterizam religião em geral, ou seja como um fenômeno antropológico universal.
A Ciência da Religião tem uma estrutura multidisciplinar. Trata-se de um campo de intersecção de várias sub-ciências e ciências auxiliares. A História da Religião, a Sociologia da Religião e a Psicologia da Religião são as mais referidas. Mas há outras, por exemplo a Geografia da Religião ou a Economia da Religião, uma matéria que atualmente ganha força na Universidade de Tübingen, Alemanha. No Brasil, na área da Ciência da Religião são freqüentemente citados as teorias e os resultados da Etnologia e da Antropologia.

Um cientista pode ser uma pessoa religiosa? Por que? De que forma a religião influencia no encaminhamento que o cientista dá a sua pesquisa?

R: Houve uma época na história da nossa disciplina em que se defendia a tese de que um verdadeiro cientista da religião deveria ser um homem religioso ou uma mulher religiosa. O famoso livro de Rudolf Otto "O sagrado" elabora essa idéia já no seu primeiro parágrafo. O livro traz a analogia de um crítico de música cuja capacidade de avaliar a qualidade de uma obra depende do senso musical de tal crítico. O mesmo valeria para a religião cuja essência se revela somente para um investigador que possui um "senso religioso". Acho que a analogia de Otto é inadequada. Para mim, um cientista da religião nada se assemelha a um crítico de música. Ele mais se parece com um historiador da arte cuja referência não é o nível estético de uma pintura, mas que coloca questões do tipo: Quem era o pintor? Em que circunstâncias ele produziu tal obra? Que papel esta obra desempenhava no contexto da produção artística do pintor? Esta pintura é uma obra típica desse pintor? Que influências estilísticas se observam nesta obra? A obra é típica de uma época da arte? De jeito semelhante o cientista da religião quer entender os fatores que influenciaram o surgimento e o desenvolvimento da religião investigada. Ele tem o objetivo de classificar seu objeto de estudo ao compará-lo histórica e sistematicamente com outras religiões. Para fazer isso, precisa-se de uma formação científica adequada, um conhecimento geral da história espiritual do mundo, um instrumentário analítico.
Se um cientista for um ateu ou um indivíduo religioso será uma opção particular, feita na sua vida privada. Mas quando exercer sua tarefa profissional deve controlar e disciplinar as próprias preferências ideológicas o tanto quanto possível. Nunca se consegue isso totalmente. Mas isso não invalida a importância do ideal da neutralidade, da objetividade. Tem-se que se prestar atenção aos fatos e verificar se estão apresentados adequadamente. Por exemplo, seria fácil desvalorizar uma religião como o Islã ao se concentrar somente nos traços que estão em tensão com os valores ocidentais e cristãos. Há uma tendência nas mídias de identificar o Islã com a Guerra Santa, mulheres reprimidas e movimentos “fundamentalistas”. Um Cientista da Religião que vê, do ponto de vista da sua religiosidade particular na sua vida pessoal, o Islã como um desafio religioso tem que prestar atenção para não usar sua autoridade profissional e desdobrar ainda mais os preconceitos já enraizados na consciência coletiva. É melhor que ele se dedique a um assunto mais distante de seus interesses cotidianos.

Qual é o estado atual da arte das pesquisas nessa área de Ciência da Religião no Brasil? E no Mundo?

R: A situação internacional é muito complexa. Cada país tem seus traços específicos de acordo com vários fatores que dependem da história nacional da disciplina, do grau de colaboração com outras disciplinas ou da presença de certas religiões. Por exemplo, a Ciência da Religião na Alemanha tem tradicionalmente um foco nas filologias e um interesse forte nas religiões orientais, especialmente na Índia. Atualmente vivem cerca de três milhões de turcos no país, um fato que levou uma nova geração de cientistas da religião a uma investigação do Islã no ambiente europeu ocidental. Nos Estados Unidos a Ciência da Religião é bastante influenciada pelas Ciências Sociais e devido ao grande número de novas religiões que têm florescido num ambiente social liberal, as teorias e pesquisas nesta área são bastante desenvolvidas.
No Brasil, a Ciência da Religião é uma disciplina relativamente nova. Em comparação a outros países o perfil da matéria é menos acentuado ainda. Mas, estou otimista a respeito do futuro da disciplina num âmbito internacional. O Brasil é conhecido como um campo religioso extremamente dinâmico, mas segundo Cientistas da Religião da Europa e dos Estados Unidos falta um saber detalhado sobre a história e a situação religiosa atual. Ao mesmo tempo, há um contingente enorme de especialistas brasileiros que poderiam contribuir muito mais para a divulgação mundial dos seus conhecimentos. Deve-se fazer um esforço para que haja um intercâmbio mais amplo, mais freqüente com colegas norte-americanos e europeus. Vejo pelo menos as seguintes áreas nas quais cientistas brasileiros desempenharão um papel importante na discussão internacional: as chamadas religiões mediúnicas (Candomblé, Umbanda, Kardecismo); as religiões de Ayahuasca (Santo Daime, Barquinha e União do Vegetal), o Pentecostalismo, a chamada “religiosidade popular”. Por outro lado, do ponto de vista internacional, são urgentes projetos sobre as grandes religiões não-cristãs como, por exemplo sobre o Judaísmo, o Islã, o Baha´i e até mesmo sobre o Budismo, uma religião tão freqüentemente citada nas mídias.

Tendo em vista que o conhecimento religioso é dogmático, não testável, depende de crença/fé e que o conhecimento científico é replicável, fidedigno, generalizável. Na sua opinião, Ciência e Religião são divergentes ou convergentes? Por que?

R: Em geral, concordo com a hipótese implícita na pergunta. Para mim, a divergência mais marcante é que cientistas empíricos não trabalham com conceitos metafísicos. Quer dizer, eles não levam em conta um nível extra-empírico. Isso não significa que eles neguem a existência desta dimensão do “ser”, mas tem a ver com a posição metodológica em que se considera cientificamente irrelevante a questão sobre a “última realidade”, sobre “o absoluto”, sobre algo que transcende as esferas “relativas”.
Mas além de divergências há várias convergências. Vou mencionar aqui somente alguns aspectos de uma constelação muito complexa.
Religião e ciência são ambas sistemas de compreensão e interpretação do mundo. A teoria de “big-bang” e a doutrina cristã de criação têm o mesmo objetivo: responder a questão de onde vem nosso universo. No decorrer do processo de secularização, ou seja, na medida em que a ciência como uma forma específica de compreensão do mundo ganhou cada vez mais aceitação coletiva na cultura ocidental, a interpretação cosmológica religiosa tem perdido sua plausibilidade para a maioria da população dos países correspondentes. Devido ao “triunfo” das ciências exatas na modernidade é inevitável aceitar, do ponto de vista de um indivíduo religioso, que a doutrina bíblica de criação seja “apenas” uma imaginação simbólica de “verdadeiros” eventos cósmicos. Neste sentido podem coexistir na consciência moderna os dois referenciais, ou seja, os relevantes textos bíblicos e as teorias astrofísicas atuais.
Agora, se imaginarmos um aluno que começa a sua formação universitária na área de astrofísica, qual é a sua situação? Ele nem tem a competência, nem a “reputação” de negar as teorias com as quais seus professores o confrontam. Para crescer dentro do sistema, ele tem que aceitar a matéria apresentada nas aulas. Os conteúdos são tão abstratos, tão distantes da sua experiência cotidiana, que não lhe resta outra opção a não ser “crer” no que está escrito nos manuais impostos pelos mestres daquela disciplina. Ele tem que ter confiança na fala das grandes autoridades dentro da comunidade acadêmica da qual ele quer participar no futuro. Talvez, depois de estudos de vários semestres, ele desenvolva a potencialidade de causar uma revolução científica, uma reforma no depósito de conhecimento estabelecido e não seja mais questionado pela geração anterior. Mas isso só acontece excepcionalmente. A regra é que o aluno de ontem se torna um representante de uma tradição já estabelecida.
As palavras grifadas ressaltam algumas palavras chaves para indicar de que de ponto de vista sociológico há mais convergências entre religião e ciência do que se pensa normalmente.

O senhor vê a Religião como inibidora no processo de desenvolvimento da ciência?

R: A história prova que religião pode ter este efeito, isso é bem ilustrado pelo famoso caso de Galileu Galilei. Todavia, neste contexto acho muito interessante uma hipótese de Max Weber que diz que as ciências modernas têm suas raízes na tradição judaico-cristã e por isso elas se desenvolveram especificamente na Europa onde as duas religiões haviam deixado suas marcas. Weber apontou para a cosmovisão dualista, para a idéia de um Deus transcendental, totalmente diferente do mundo, que, uma vez criado, segue suas mecanismos invariáveis. Segundo Weber este conceito provocou uma certa divisão na área intelectual. Por um lado, se acentuou a teologia ocupada do lado divino do “ser”. Por outro lado, as ciências exatas se articularam propondo uma integridade, uma certa autonomia do mundo distante de Deus exposto a uma investigação própria. Neste sentido podemos dizer que a religião, em vez de inibir um desenvolvimento da ciência, o estimulou. Mais especificamente devemos pensar, por exemplo, em vários grandes físicos que eram homens religiosos e sua religiosidade não inibia que eles chegassem a resultados que levassem a novos paradigmas em suas áreas. Devemos também lembrar do caso da Igreja Cristã dos Santos dos Últimos Dias, ou seja, dos chamados Mórmons. Motivados pela doutrina que membros da Igreja podem contribuir para a salvação de seus parentes já falecidos, ou seja, como conseqüência da prática do batismo de antepassados, há grandes especialistas em pesquisa na área de genealogia nesta Igreja. Este exemplo também indica que religião não deve ser reduzida ao seu papel inibidor a respeito do progresso científico.

A religião pode ser considerada responsável pela dificuldade que a sociedade tem de aceitar as novas idéias propostas pela ciência?

R: Sim, mas para mim a pergunta mais relevante é como avaliar este efeito? Não é assim que as possibilidades que a ciência nos oferece correm riscos? Quem garante que uma inovação é aproveitada de maneira responsável e realmente contribui para uma vida melhor? A discussão sobre a biotecnologia é um bom exemplo para entender que preciso ter uma instância de controle, pelo menos no sentido de um apelo para a consciência coletiva e a responsabilidade ética de pesquisadores que propagam a hipótese que tudo o que é cientificamente possível é automaticamente legítimo. Nos debates deste tipo, instâncias religiosas desempenham geralmente um papel fundamental lembrando-nos dos limites do ser humano. Mesmo que se prove em ambas as áreas que não houve nenhuma razão para tais preocupações e embora a história mostre que as religiões não podem deter o desenvolvimento científico, precisamos continuamente de mentes críticas que reflitam sobre possíveis impactos negativos de algo que parece um “progresso”.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Iconografia do Dogma Trinitário Cristão

O seguinte artigo é de autoria de Michel Fares Bridi, ex-aluno de Ciências da Religião da PUC-SP e colunista do site "Ecclesia Brasil", da Arquidiocese Ortodoxa Grega de Buenos Aires e América do Sul.

SANTÍSSIMA TRINDADE - Uma Interpretação Iconográfica
do Dogma Trinitário


• A arte iconográfica

O ícone (do grego έικώυ = imagem, retrato, semelhança), quadro pintado sobre a madeira com a utilização de matérias naturais, rico em teologia e em catequese bíblica, tem sua origem milenar no mundo grego e russo.

Trata-se da típica arte sacra e canônica da Igreja Ortodoxa.

Há regras fixas para se reproduzir um ícone, tais como jejum, orações, conhecimento da Escritura, da Tradição, do Magistério etc.

O ícone é uma imagem, mas nem toda imagem é um ícone. É muito mais que uma livre representação de um mistério, deixada por conta da imaginação do artista; não se trata daquele espiritual fruto da sensibilidade, das divagações subjetivas e dos insípidos gostos pouco claros; não é um retrato no sentido moderno, secularizado e pouco transcendente. Ao contrário, sua linguagem é simples e visa somente a glorificação do mistério. De fato, o ícone é celebração do mistério de nossa salvação – Encarnação, Morte, e Ressurreição; por isso, instrução aos fiéis.

O ícone é glorificação e cântico nas suas cores, verso que se proclama na ponta do pincel, se ligado às regras. Isso não significa que se trata de uma arte fria ou pré-determinada que não aceita evolução, pois, olhando vários ícones representando o mesmo assunto reparamos que, mesmo sendo parecidos, são diferentes; não se encontra uma pintura semelhante à outra. Cada quadro tem sua individualidade, destacando-se o estilo de cada artista nos diversos países onde se divulgou a iconografia. Apesar da distância cronológica e geográfica e da falta de comunicação entre eles, se manteve o tema de uma forma fixa (isento de modificação), embora a criação se apresente de modo diferente. No ícone há vida e movimento interno, majestade, tranqüilidade, harmonia e interior perfeito,e isso faz a diferença entre ele e as pinturas tradicionais; o ícone tem o intuito de transmitir a profundidade celeste.

Após o ícone ser pintado, ele é consagrado. Na Igreja há orações específicas para a consagração dos ícones onde o Sacerdote diz:

“Ó Senhor, Deus Divino. Tu criaste o ser humano à Tua imagem e semelhança, porém a tentação o fez cair. Mas a encarnação de Cristo que tomou nossa forma humana renovou a imagem impura devolvendo a Luz a seus Santos, restituindo-lhes a dignidade. Porem, nós, ao venerarmos a suas imagens, veneramos a Tua; através deles e glorificamos a Ti que é o exemplo maior”. [1]

I . 1 - Finalidade do ícone

A iconografia cristã, por sua natureza, é semelhante a uma escola de oração e purificação interior que tem por objetivo favorecer um encontro sempre mais claro e sincero com Jesus e sua Igreja.

A técnica da pintura bizantina é somente o terreno onde se cultiva e se desenvolve o mistério de tal encontro. A missão do iconógrafo é a de tornar visível e tangível a “Verdadeira Beleza”, escondida no mistério silencioso das Escrituras. Nesse caminho, ele não está só, mas em companhia de uma tradição de santos que o precedem e o ajudam no longo caminho de sua existência. Segundo a Igreja oriental, o iconógrafo é chamado a tornar sagrado tanto o conteúdo quanto a forma de sua pintura; por isso a obra que sai de suas mãos deve encontrar analogia nas Escrituras e na Tradição dos Santos Padres. Como encontramos no VII Concílio Ecumênico de Nicéia. “A ele cabe somente o aspecto técnico, porque toda a elaboração do ícone provém dos Santos Padres”. [2]


I . 2 - Quem é e como vive um iconógrafo?


O dia do iconógrafo começa cedo. Logo que se levanta pela misericórdia e a sabedoria de Deus, se dedica a fazer uma meditação da Escritura, contemplando um ícone de Cristo ou da Virgem Maria. Antes de começar o sagrado trabalho de pintura, ele faz uma das orações próprias do iconógrafo, das quais a mais famosa é:

“Oh! Divino Mestre, Ardoroso artífice de toda a criação. ilumina o olhar do teu servo, guarda o seu coração, rege e governa a sua mão para que dignamente e com perfeição, possa representar a tua santa imagem. Para a Glória, a Alegria e a Beleza da Tua Santa Igreja”.[3]

Ele deve ser responsável e fiel ao reproduzir um modelo ou criá-lo, conforme a Escritura, a Tradição e a Doutrina da Igreja. O que o sacerdote significa no Santo Oficio, assim também é o pintor de ícone, ao transformar a divina liturgia, por meio de cores, sobre a tábua. Em sua vida diária, deverá cultivar os valores mais altos, tais como a humildade e a caridade, procurando viver em paz e corretamente, evitando as conversas frívolas e as vaidades mundanas. Deverá jejuar e orar antes e durante o trabalho, seguindo as normas da Igreja, pois somente se sua fé for autêntica e a sua mente estiver sempre vigilante na oração é que a sua obra poderá transmitir uma mensagem àqueles que a contenmplarão.

É recomendável que ele tenha um bom diretor espiritual e um padre confessor para não cair no pecado da soberba, ao levar muito alto a mente e o coração a Deus. Que siga a técnica pictória dos grandes mestres iconógrafos (emulsão a ovo, terras, minerais etc) da qual já foi comprovada a estabilidade, beleza e resistência ao longo dos séculos.

Ele nunca deverá esquecer que, com o seu ícone, ele serve ao Senhor, comunicando e cantando sua glória; e para os fiéis, o ícone serve para a contemplação dos mistérios.

Para destacar o Belo é preciso ir além do olhar, atingir a perfeita harmonia e, em última análise, suscitar a oração.

Dentro dessa linha, recordo a carta de João Paulo II aos artistas:

Este mundo no qual vivemos precisa da beleza, para não cair no desespero. A beleza com a verdade, dá alegria ao coração dos homens e é fruto precioso que resiste ao desgaste do tempo, que une as gerações e as faz comunicar na admiração. (...) Nobre mistério aquele dos artistas, quando as suas obras são capazes de refletir, em qualquer modo, a infinita beleza de Deus e endereçar a Ele as mentes dos homens”. [4]

A mensagem transmitida pelo ícone é, e sempre será, atual, porque diz respeito ao homem e ao divino; por isso sua singela beleza é expressão do Originário e, ao mesmo tempo, antecipação do Definitivo.

I. 3 – A arte sagrada dos ícones

O aparecimento dos ícones na história da Igreja registra sua importância, pois não eram considerados como uma mera obra artística. Os primeiros iconógrafos tratavam de retratar com cores e pinturas o que os Evangelhos expressam em palavras. Contudo, os ícones e, em geral, a cultura bizantina, são uma mescla de cultura, arte, história, fé etc... , que se faz viva no coração dos habitantes do Império. Desde os imperadores até as pessoas mais humildes, viviam as experiências dos ícones como expressão da fé de um povo que experimentava diariamente a intervenção de Deus, da Theotokos. [5] e dos Santos na sua vida cotidiana, tal como viviam as primeiras comunidades cristãs de Jerusalém. Toda a cultura bizantina (arquitetura, escultura, pintura, bordados, manuscritos, entre outros), está iluminada por essa fé que impregna cada uma das atividades e da vida dos habitantes do Império do Oriente e Ocidente.

Enquanto o Ocidente expressa essa fé vivida mediante a experiência pessoal do artista, o Oriente atém-se aos cânones estabelecidos pela Igreja. O primeiro expressa sua própria experiência e os próprios sentimentos de fé, pintando com total e absoluta espontaneidade qualquer motivo religioso que lhe é sugerido, solicitado ou que, simplesmente, expresse o que ele sente ou experimenta. No Oriente, os iconógrafos, seguindo os ensinamentos do Mestre Dionísio e, em geral, as determinações da Igreja, buscam reproduzir as mesmas passagens dos Evangelhos, omitindo qualquer experiência ou sentimento pessoal vivido, tratando simplesmente de uma profunda vida de oração, expressando-se no conteúdo dos Evangelhos. Os iconógrafos, antes da iconografia ter passado a ser objeto de ocupação de pessoas amantes das artes manuais, eram sempre monges, e a iconografia era uma função conferida pela Igreja. A tarefa do iconógrafo sempre foi comparada à do sacerdote, mesmo porque ambos pregavam a Palavra de Deus; o Iconógrafo, com a pintura e as cores, o sacerdote, mediante a Palavra ou a Escritura.

I. 4 - Os Primeiros Ícones Cristãos

Após a morte e a ressurreição de Cristo, a nova fé no Ressuscitado espalhou-se rapidamente por todo o mundo romano e pelo Oriente Médio. As histórias dos Apóstolos e das testemunhas que tinham conhecido Jesus Cristo davam descrições de sua aparência. Num dado momento as pessoas começaram a criar e distribuir pinturas de Cristo, e inclusive de seus discípulos e dos mártires da fé cristã.

Assim, havia umas pinturas muito antigas de São Pedro e de São Paulo. Entretanto, a Igreja ficou um tanto dividida quanto às imagens de Cristo.


I. 5 - Ícones do Período Médio Bizantino


No princípio do VIII século irrompeu uma controvérsia terrível na Igreja Ortodoxa entre os iconoclastas (quebradores de imagens) e os favoráveis aos ícones sobre o uso dos ícones na adoração e na oração. A questão foi discutida na Igreja durante cem anos. Os iconoclastas falavam em adoração dos ícones, enquanto os que eram favoráveis falavam somente em proskynesis. [6] Essa mesma veneração era concedida ao imperador, como reverência, saudação e respeito, mas não como adoração. O Imperador Constantino através de um edito em 730, decretou a proibição dessas imagens. Esta proibição era ilegal, pois pela primeira vez, um imperador influía diretamente nas questões da Igreja, ignorando os outros patriarcas e inclusive, o papa em Roma.

O edito foi observado estritamente em Constantinopla. Mas, em 843, essa proibição foi revogada, com a vitória total dos ortodoxos.

Durante o período iconoclasta, toda a tradição da pintura dos ícones foi amplamente prejudicada. Podemos supor que os ícones criados durante esse período tinham um ar mais austero, talvez um tanto severo na aparência, considerando que nessa época quase todos os ícones eram produzidos nos mosteiros pelos monges.

Quando os pintores de ícones se tornaram livres para trabalhar abertamente, após a revogação de 843, os artistas necessitaram de muitos anos para voltar a dominar a técnica e os estilos tradicionais, além de que os materiais para a pintura e o trabalho do mosaico tornaram-se difíceis de encontrar. Os ícones eram pintados na têmpera em ovo, no mosaico, no marfim, no vidro, no mármore, no ouro e em pedras preciosas. Mas, aos poucos, a arte de Bizâncio foi alcançando um refinamento e uma beleza talvez nunca antes conseguida.

Notas
[1] “Eucologion” pg 532.
[2] Documentos do VII Concilio Ecumênico de Nicéia (DS 303)
[3] “Eucologion” pg533[4] Carta Apostólica “DUODECIM SAECULUM” sobre a veneração das imagens por ocasião do XII Centenário do II Concilio de Nicéia.
[5] Palavra grega que intitula a Virgem Maria de “A Mãe de Deus”, Titulo dado no III Concilio Ecumênico Éfeso (DS 111a). [6] proskynesis: Palavra grega que significa veneração

Postado por Fernando Tetsuo, a pedido do autor.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

23º SOTER - Sociedade de Teologia e Ciências da Religião



Mais informações e inscrições em: http://www.soter.org.br/congresso2010/inscricao.htm

O Catolicismo e a Construção da Identidade Nacional (Parte II)

"O seguinte artigo é a segunda parte do artigo de autoria de Moisés de Lemos Martins, Professor Catedrático de nomeação definitiva da Universidade do Minho, publicado em 2 de Junho de 2009 na Revista de Religião da Universidade de Minho."

4. Ser português: di/vidir e lutar pela di/visão nacional

4. 1. Em Portugal identificam-se religião e nação?
Ainda a esta luz, como combate por uma determinada visão da identidade nacional, como luta por uma específica ordenação simbólica do país, podemos entender a tomada de posição de Barradas de Carvalho sobre aquilo que chama de “razões profundas” da “fraqueza” do catolicismo em Portugal (Carvalho, 1974: 32). Com a autoridade que lhe advinha da sua condição de académico e investigador, saiu este historiador a terreiro, dezasseis anos depois de Salazar se ter pronunciado sobre a identidade católica do país, para rebater a legitimidade daqueles que associavam a ideia religiosa à formação da nação portuguesa.
Comparando a História de Portugal com a de Espanha, para explicar “a dualidade da civilização ibérica”, Barradas de Carvalho acha legítimo, no caso espanhol, associar a ideia de nação à ideia de religião, mas afasta secamente essa hipótese no que respeita ao caso português. Diz assim: “Em Espanha a unidade nacional forjou-se ao longo da reconquista, na luta contra o Islão, e de tal maneira que religião e nação se confundiram. A noção de cristão identificou-se com a de espanhol, e inversamente, a noção de espanhol identificou-se com a de cristão. A noção de muçulmano, por sua vez, identificou-se com a de estrangeiro, mesmo quando o muçulmano era de origem hispânica” (lbid.: 32-33). E passa então a analisar o caso português. “Em Portugal, nada de comparável”, diz. “A luta contra o Islão foi muito mais curta. A reconquista estava terminada em 1250 e não teve como em Espanha a mesma influência, não teve o mesmo papel na formação do País. Por outro lado, e aspecto muito importante, a formação de Portugal não se forjou contra o Islão, mas contra Leão, e depois contra Castela, isto é, contra outros países cristãos”. E peremptório, remata: “Não podia ter, portanto, um carácter religioso, mas apenas um carácter político” (lbid.: 33)12.
Barradas de Carvalho, grande apreciador de Oliveira Martins, Antero de Quental, Eça de Queirós, Teófilo Braga, todos intelectuais de cultura francesa laica, realçava a dualidade da civilização ibérica. E fazendo-o deste modo, pela análise dos diferentes processos de formação nacional, melhor podia justificar a adesão de Portugal à França das Revoluções do século XIX (1830, 1848, Comuna de Paris), afinal à França laica.
E assim, depois de sublinhar que não é para a cultura religiosa da França que, a partir de 1640, Portugal se volta, Barradas de Carvalho mostra-se particularmente incisivo. “O que Portugal foi procurar, beber, na França”, diz, “não foi o catolicismo autoritário de Bossuet, nem mesmo o catolicismo democrático de Lacordaire, ou o semijansenismo de Pascal, mas sim as ideias de Montesquieu, de Voltaire, de Rousseau, de Diderot, o romantismo anticlerical de Michelet, de Edgar Quinet, de Victor Hugo, o socialismo de Fourier e sobretudo de Proudhon.
Foi finalmente a doutrina da laicização do Estado tal como ela prevaleceu em França no começo do século XX” (Ibid.: 27-28)13

4. 2. Ser português é ser cananeu?
Vemos, pois, que nem só os políticos entram na luta pela definição legítima da identidade. Também o fazem os cientistas sociais, historiadores ou não. O sociólogo Moisés Espírito Santo, por exemplo, sugere nas Origens Orientais da Religião Popular Portuguesa (1988) e nas Fontes Remotas da Cultura Po rtuguesa (1989), um silogismo do género: Portugês, logo cananeu. Embora haja aqui certamente uma chispa provocatória, este sociólogo já fora suficientemente ousado em Comunidade Rural ao Norte do Tejo (1980). Aí escreve o seguinte:
“A religião aldeã [ ... ] não é genuinamente cristã, e ainda por muito menor razão, católica ou protestante. A religião rural é a síntese de diversos sistemas religiosos sobrepostos, entrelaçados por considerações de ordem social de acordo com as necessidades do grupo” (p.153). E mais adiante sentencia, roçando o iconoclasmo: “A Igreja tem pouco ou nada a ver com muitas das crenças e ritos no meio rural. Expressão de dominação de classe [ ... ] a ‘religião institucional’, pregada e mantida por uma instituição (a Igreja Católica) e certos movimentos a ela ligados, [pretende] substituir os valores religiosos da aldeia por fórmulas ou práticas que apelam para a submissão e o respeito da ordem estabelecida” (Espírito Santo, 1980: 54)14.

4. 3. Ser português é ser católico por defeito ou por feitio?
Nesta luta por uma definição legítima da identidade, vemos ainda os homens de letras e os homens de Igreja, eclesiásticos ou teólogos. É o caso de Bento Domingues, que em a religião dos portugueses (1988) se refere às diversas “artes de ser católico português” . E é também o caso de José Saramago, que com o Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991) e com o ln Nomine Dei (1 992) entra no debate sobre a identidade católica do país.
Centrando o debate em José Saramago e em Bento Domingues, extravasá-Ios-emos, no entanto, ao interrogarmos Fátima como expressão dominante do catolicismo português neste século.

4. 3. 1. A herança cristã de Saramago: uma história de sofrimento e de lágrimas
Sempre tivemos a ideia de que é a nossa identidade nacional, a nossa identidade como nação católica, que é posta em causa nestes textos. Desde o Memorial do Convento (1980) que Saramago joga com o nosso imaginário colectivo e parece dar-se uma missão histórica: alimentar o nosso imaginário em sonhos, refigurando-o por arte romanesca.
O Memorial do Convento dá-nos uma leitura complementar daquilo que foi a nossa colonização do Brasil. O ouro que começou a ser descarregado em Lisboa no início do século XVIII, em quantidades totais que ultrapassaram largamente o ouro que Portugal alguma vez recebeu de África e da América Espanhola no século XVI, como bem assinala Oliveira Marques (1976: 530), esse ouro, proveniente das minas então descobertas no Brasil, foi o país enterrá-lo em Mafra, por obra e graça de D. João V, que entendeu abrir a colossal indústria da construção de um convento e lançou a nação inteira a trabalhar nela.
O Ano da Morte de Ricardo Reis (1982) é a fixação na figura enigmática e heteronímica de Fernando Pessoa, o expoente máximo da literatura portuguesa neste século e uma das maiores figuras da nossa literatura de sempre.
A Jangada de Pedra (1986) interroga o nosso destino nacional, na altura da opção pela comunidade europeia Por mágica literária, a Península Ibérica (e não apenas Portugal) devém um rochedo a vogar no Atlântico, na periferia da Europa, da África e da América. A ideia de um Portugal periférico na Europa, assim como a ideia de um Portugal europeu, são substituídas pela ideia de uma Península com um destino comum. Situados embora na periferia dos três continentes, Portugal e a Espanha são simultaneamente de todos eles. Depois, Saramago vai mais atrás, à época da fundação da nação e reescreve a tomada de Lisboa aos mouros, na História do Cerco de Lisboa (1989).
Feito isto, vieram finalmente o Evangelho Segundo Jesus Cristo e o ln Nomine Dei.
Estávamos em 1991 e 1992. Tratava-se agora de discutir a nossa herança cristã. E Saramago fá - lo de tal maneira que a conclusão só pode ser uma: o cristianismo não é de modo nenhum herança que se aproveite. Com efeito, a operação a que aí procede Saramago é dissolver o cristianismo num “mar infinito de sofrimento e de lágrimas”, expondo o programa sacrificial de um Deus-vampiro que sacia no terror e no sangue a sua ilimitada vontade de poder. Através desta operação de dissolução, é colocada uma dúvida radical sobre a possibilidade de a religião católica poder constituir fundamento da nossa identidade nacional.
“E qual foi o papel que me destinaste no teu plano”?, pergunta Jesus a Deus, seu pai. “O de mártir, meu filho, o de vítima, que é o que de melhor há para fazer espalhar uma crença e afervorar uma fé” (Saramago, 1991: 370).
E na página seguinte: “E a minha morte, será como”? Respondeu-lhe Deus: “A um mártir convém-lhe uma morte dolorosa, e se possível infame, para que a atitude dos crentes se tome mais facilmente sensível, apaixonada, emotiva”.
“E depois”?, insiste Jesus (Saramago, 1991: 381). “Depois, meu filho, será uma história interminável de ferro e de sangue, de fogo e de cinzas, um mar infinito de sofrimento e de lágrimas” (Ibidem).
Segue-se então ao longo de páginas inteiras o rol infindável daqueles que, sendo santos e mártires, são perfeitos, amam o sacrifício e se comprazem nele, a ponto de abdicarem de tudo para fazer sempre a vontade de Deus, expressa na vontade da Igreja.
Quem, por sua vez, ousar opor-se a essa ilimitada vontade de poder da Igreja será também trucidado. Do sacrifício ninguém escapa. A prova temo-Ia nas vítimas das cruzadas, das guerras de religião, da Inquisição, dos massacres de índios, do comércio de escravos, para a maior glória de Deus e da sua santa Igreja.
Dissolvendo assim o cristianismo num “mar infinito de sofrimento e de lágrimas”, Saramago coloca, já o assinalei, uma dúvida radical sobre a possibilidade de a religião católica constituir fundamento da nossa identidade. O catolicismo não é, do seu ponto de vista, herança que valha a pena.
Claro que sempre houve quem pensasse o contrário. E entre eles, António de Oliveira Salazar, como já assinalámos. Relembremos os termos em que o então Presidente do Conselho de Ministros de Portugal se dirigiu à nação: “Portugal nasceu à sombra da Igreja e a religião católica foi desde o começo o elemento formativo da alma da Nação e traço dominante do carácter do povo português. Nas suas andanças pelo Mundo - a descobrir, a mercadejar, a propagar a fé -impôs-se sem hesitações a conclusão: português, logo católico” (Salazar, 1951: 356).
Pois bem, na lógica daquilo que escreveu no Evangelho segundo Jesus Cristo e no ln nomine Dei, estamos convencidos que José Saramago não teria dificuldade em associar como dois irmãos - gémeos catolicismo e salazarismo. Com efeito, quem sustentou que Portugal nasceu à sombra da Igreja também propôs ao país um plano de sacrifício total. A salvação escreve Salazar, “é a ascenção dolorosa de um calvário. No cimo podem morrer os homens mas redimem-se as pátrias” (Salazar, 1935: 18).


4.3.2. Fátima: o milagre católico de um povo em júbilo
Na abordagem do catolicismo em Portugal Fátima impõe-se como realidade incontornável. Sendo certo que o catolicismo português não se esgota aí, a verdade é que durante décadas o proclamado ‘altar do mundo’ foi lugar de expressão máxima dos católicos em Portugal. São duas as questões que nos levam a reflectir sobre Fátima nesta comunicação. Em primeiro lugar importa perceber quais os elementos que constituem e singularizam esse espaço e de que forma contribuem para a sua afirmação como lugar de fé. A segunda questão prende-se com a ligação de Fátima a um universo complexo que simplificadamente podemos designar por ‘imaginário português’. Será naturalmente através deste segundo aspecto que nos reencontraremos declaradamente com a questão da identidade nacional que aqui nos trouxe.
É importante que desde já fique claro que falar de Fátima não é falar de uma realidade definida de uma vez por todas, mas de algo que se foi transformando e adaptando a novas solicitações. Esta evidência toma fundamental não só a compreensão do contexto histórico em que as aparições ocorreram, como também as várias transformações -sociais, políticas, etc. que foram sucedendo ao longo do tempo. Não é este o lugar nem esta a ocasião para aprofundar as circunstâncias históricas que caracterizaram a segunda década do século XX em Portugal. Vale a pena, todavia, recordar em breves palavras alguns factos sugestivos do ponto de vista das questões que aqui nos ocupam.
Desde logo lembrar que em 1917, data das aparições, Portugal vivia desde há alguns anos em regime republicano e isso vinha - se traduzindo de forma clara numa grave tensão entre o poder político e a Igreja. Por exemplo a Lei da Separação (1911), que procurava ser expressão da laicização do Estado, era acusada pelos bispos não de separar, mas de integrar: “a lei tratava o catolicismo como se este não passasse de um culto doméstico de alguns cidadãos a quem o Estado dava licença para realizarem cerimónias em edifícios -as igrejas -que a lei ordenava que ficassem a pertencer ao próprio Estado” (Ramos, 1994: 407-8).
Da parte de Igreja desde cedo vieram sinais de resistência. Do seu interior dimana, por exemplo, uma pastoral colectiva contra as leis laicas, que é lida nas igrejas logo no ano de 1911. Mais tarde são ainda os bispos que se dirigem aos católicos propondo a União Católica, dando dessa forma expressão aos esforços de diversos grupos no sentido de constituir ou revitalizar associações católicas. De entre estas avultam o Centro Académico de Democracia Cristã (CADC) e o Centro Católico Português, ramo da União Católica e que se tomará partido político. Igualmente importante é o desenvolvimento da imprensa católica, que permite dar visibilidade ao conjunto de acções que a hierarquia e os intelectuais católicos vão promovendo.
Num plano diferente, mas igualmente importante, devemos nós considerar iniciativas como a do fomento da devoção a D. Nuno Álvares Pereira, beatificado em 1918, que ilustra o desejo de fazer confluir propósitos religiosos e políticos numa figura que permitia celebrar o patriotismo lembrando o papel do Igreja (Marques, 1991: 508-9). Mais directamente relacionada com Fátima poderá estar a devoção ao Rosário de Nossa Senhora, que ganha particular incremento a partir de 1915. Vale a pena recordar o que sobre esse movimento diz Costa Brochado:
“Os impios tinham motivos para supor a Igreja derreada, prestes a sucumbir, eis que ela se ergue mais forte e bela do que nunca, lançando-se à reconquista da cristandade portuguesa com a anua singular do Terço do Rosário! Organizou-se em todo o país a Cruzada do Rosário, em que se alistaram nas cidades e aldeias milhares de homens, mulheres e crianças, todos solenemente comprometidos a cumprirem este programa:
1º - Rezar o Terço todos os dias pelo ressurgimento temporal e espiritual de Portugal, de preferência em família, sempre em comum;
2° - Rezar o Terço uma vez em cada semana, em comum com o grupo a que pertencesse, na Igreja ou em público, em hora e dia marcados pelos dirigentes; 3º - Comungar todos os domingos ou, pelo menos, no primeiro d cada mês, pelas intenções da Cruzada ( … ). No lar dos cruzados deveria ser entronizada uma imagem de Nossa Senhora do Rosário ou pelo menos uma estampa (Brochado, 1948: 131-2).
Esta breve referência ao enquadramento do catolicismo em Portugal na altura das aparições de Fátima, procura apenas evidenciar dois aspectos distintos mas confluentes. Por um lado a existência de um certo sentimento de acossamento por parte de sectores importantes da Igreja, por outro a persistência e eventualmente mesmo o fortalecimento de referenciais católicos que certamente se coadunam com a experiência vivida pelos videntes. Na verdade, como Frei Bento Domingues faz notar:
O imaginário transmitido nas narrativas das Aparições de Fátima é o imaginário corrente das crianças e adultos daquela época. Não encontrei aí nenhuma novidade. Reza do terço, sacrifícios de reparação, devoção e consagração ao Coração de Maria conversão dos pecadores, céu, purgatório, inferno, Santíssima Trindade, eram imagens de que as crianças estavam povoadas mesmo sem qualquer aparição (Domingues, 1988: 57-58).
É justamente pela articulação destes dois factores -acossamento da Igreja e resistência parcialmente sustentada no fortalecimento de manifestações populares de catolicismo -que podemos compreender o sucesso de Fátima. É talvez interessante referir aqui, que apenas três dias antes da primeira aparição, um jovem de Ponte da Barca, também ele pastor como os videntes de Fátima, foi favorecido com a visão da Virgem. O diálogo que manteve com a aparição aproxima-se dos diálogos de Fátima (cf. Marques, 1991: 510), mas o acontecimento, tendo tido alguma difusão na época, rapidamente caiu no esquecimento. À parte o facto de Fátima ser um acontecimento repetido ao longo de seis meses e que por isso mesmo foi ganhando força e adesão, o que mais distingue os dois acontecimentos foi a diferente apropriação que deles se fez. Fica um condenado ao rápido esquecimento, enquanto o outro se toma expressão de uma restauração espiritual, já que, “Profanamente, pelo menos, Fátima foi obra dos intelectuais católicos - que assim obtiveram o sucesso entre as massas” (Ramos, 1994: 560), e comprovando isso mesmo basta notar como à sua promoção encontramos desde cedo nomes ligados ao CADC (Carlos Azevedo Mendes) e ao Centro Católico Português (Dinis da Fonseca) .

4.3.3. Fátima: de altar da fé a altar da nação
Fátima pode então ser entendida como um sinal e um instrumento providencial de reconciliação da nação com a sua identidade católica. Depois de um período de crise em que se teriam afirmado valores estranhos aos sentimentos profundos da nação, sucede a revitalização dos valores perenes. Deste ponto de vista, e ainda que separados por alguns anos, Fátima e o Estado Novo perseguem um objectivo comum, o da restauração da identidade nacional. Evidentemente que assim entendida, Fátima não se esgota nas sucessivas aparições de 1917. Ao contrário, estamos perante uma narrativa que se vai construindo e transformando ao longo do tempo, dessa forma se adequando à ‘visão legítima’ do catolicismo. Basta notar como à espontaneidade dos primeiros relatos sucede uma narrativa reelaborada, simultaneamente depurada e enriquecida. Depurada do que nela existia de menos ‘canónico’ e enriquecida tanto pelo pormenor visualmente sugestivo como pelo aprofundamento teológico da mensagem.
Facilmente se constatam os pontos extremos na ‘evolução’ da narrativa. Situa-se o primeiro em 1917, exactamente à data das aparições, resultando dos vários inquéritos e interrogatórios feitos aos videntes. Situa-se o outro nas Memórias de Lúcia, escritas nos anos 40 a pedido da hierarquia religiosa. Os vinte e três anos que estão compreendidos entre estas duas datas foram suficientes para fazer de uma série de acontecimentos estranhos o eco do apelo divino a uma humanidade desavinda. Houve tempo para dar a um acontecimento local relevância nacional e logo internacional. O cepticismo dos não-crentes silenciou-se e o dos religiosos transformou-se em fé inabalável. Neste movimento de conversão e rebatimento da dúvida a narrativa foi-se adequando áquela que devia ser a mensagem justa e correcta da divindade aos homens.
A maleabilidade narrativa que efectivamente existe neste caso não desqualifica, naturalmente, o fenómeno de Fátima. Ao contrário, confere-lhe o dinamismo indispensável à sua conservação. Transformando-se ao longo do tempo, o relato do que aconteceu em Fátima naquele ano de 1917, abre-se sempre ao presente descodificando-o, mas abre-se também a um imaginário que marca profundamente o português. É aqui que mais claramente as redes da religião se entretecem com as da política, sendo necessário falar dessa relação antes ainda de esclarecermos os contornos desse imaginário a que aludimos. Os anos que se seguiram às aparições deram visibilidade ao local e aos acontecimentos, mas não se assisti tu a nenhum reconhecimento oficial. O cardeal patriarca de então, António Mendes Belo, manteve urna posição de neutralidade, não sendo os canais oficiais a fazerem a promoção de Fátima -que todavia foi sendo feita, por exemplo com o lançamento em 1922 do jornal A Voz de Fátima (cerca de 300.000 exemplares no início dos anos 70).
Será apenas com o Estado Novo que Fátima se potencia:
Na fase em que o Estado Novo se instalou no poder, Fátima vai ser oficializada, tanto pelo novo cardeal patriarca, D. Manuel Gonçalves Cerejeira, como pelo governo. A 13 de Maio de 1929. o Presidente do Conselho e o Presidente da República participam publicamente no culto. Em 1930, Monsenhor Correia da Silva, numa carta pastoral de 13 de Outubro, declara legítimo o culto. A 13 de Maio de 1931 faz-se uma peregrinação de “mais de 1milhão de pessoas”, ao que se afirma. a ela presidindo o Cardeal Cerejeira (Cerqueira, 1973: 482).
Existem outros sinais desta relação, talvez menos visíveis, mas ainda mais profundos.
Tão profundos que para o Cardeal Cerejeira em Fátima anuncia a ditadura portuguesa, como deixa ficar claro em carta que escreve a Salazar, seu amigo desde os tempos da universidade: “Tu estás ligado a ele [milagre de Fátima]: estavas no pensamento de Deus quando a Virgem Santíssima preparava a nossa salvação. E tu ainda não sabes tudo … Há vítimas escolhidas por Deus para orarem por ti e merecerem por ti”
É neste ponto exacto que importa recuperar a questão do imaginário português. Gilbert Durand (1986:9-21) distingue nele quatro grandes grupos míticos: a nostalgia do impossível, o fundador vindo de fora, o salvador oculto e a transmutação dos actos. A ligação de Fátima com o poder político que caracterizará o Estado Novo permite dar conteúdo a alguns desses elementos simbólicos. Atente-se como em Fátima se anuncia um impossível um pequeno país como Portugal tornar-se-á no lugar predestinado a guiar à salvação o mundo enredado na guerra. Por outro lado a Virgem que apareceu aos pastorinhos não é outra senão aquela que havia já guiado Afonso Henriques, o rei fundador, e que por isso mesmo é ela também fundadora da nação e sua parte integrante, vindo mesmo a ser coroada Rainha de Portugal no séc. XVII.
Salazar, por seu turno, não é um mero chefe político mas um salvador que se manteve à margem, tendo surgido apenas graças a uma vontade que o transcende e que Fátima ilustra. Finalmente Fátima nasce do nada por força da fé. Aí se assiste então à transmutação das coisas terrenas em divinas -dos caminhos brutos da serra em roteiros de peregrinação, da pequena azinheira onde a aparição ocorreu em Santuário do mundo.
Entender desta forma os fenómenos de Fátima, significa ver neles algo mais que a expressão propriamente religiosa que de forma imediata lhes encontramos. Nem Portugal se tomou num Estado confessional, nem as relações de Salazar com a Igreja foram sempre pacíficas (cL Domingues, 1988: 64-65). Apesar disso Fátima foi sempre um lugar de referência do poder e isso porque mais que um altar de fé foi o altar da nação.
É pois a Fátima e a Salazar, seu instrumento, que se deve agradecer a paz que se vive em Portugal durante a II Guerra, e senão veja-se uma fotografia do ditador, segurando numa mão o terço e na outra o telefone com que negoceia com Londres (cf. Domingues, 1988: 64). Mas veja-se também como a paz da nação se pode e deve tomar a paz do mundo. Basta para isso que os olhos da cristandade se voltem para Fátima e a força da fé permita a conversão da Russia, que Nossa Senhora pedira por intermédio de Lúcia.
Usando as palavras de Eduardo Lourenço, podemos dizer que isto nos remete para o “onirismo mais cabal”, mas que não é senão a actualização de um destino transcendente para Portugal, algo que faz de um pequeno país a luz que deve guiar o mundo inteiro. Actualização da promessa de paz que Bandarra antevê que seja trazida por D. Sebastião. Mas cumprimento também dessa ‘nostalgia do impossível’ que seria a realização do Império Mundial de Portugal que no século XVII o padre António Vieira promete. Ou ainda a concretização do 5° Império, império cultural e espiritual, que segundo Fernando Pessoa, Portugal ofereceria ao mundo.
Fátima é pois a expressão de um país que se transcende, superando a sua pequenez e carácter periférico, e nessa medida ela toma-se um centro para onde converge o olhar e onde o poder se legitima.
O destino transcendente que se reservava a Fátima ultrapassaria neste caso o onirismo exorbitante de que surge revestido. Ao contrário do regresso de Sebastião, do Império Mundial ou do 5° Império, profecias incumpridas e que o tempo foi apagando, Fátima tornar-se-ia, de facto, o altar do mundo. A partir de 1940 “é Fátima que dá ( … ) o sentido do vento a Roma” (Domingues, 1988: 55). Vejamos apenas alguns exemplos: em Outubro de 1942, respondendo a um pedido que Nossa Senhora fez a Lúcia, o papa Pio XII consagra o Mundo ao Imaculado Coração de Maria; em 13 de Junho de 1946 o legado pontifício coroa a imagem de Nossa Senhora de Fátima como Rainha da paz e do Mundo; de 1947 a 1949 a imagem de Nossa Senhora de Fátima parte de Portugal e percorre o mundo como peregrina; em Julho de 1952 Pio XII consagra a Rússia ao Imaculado Coração de Maria a pedido de Lúcia; em 1984 Nossa Senhora de Fátima é proclamada padroeira da República Popular de Angola.
Os exemplos podiam multiplicar-se, mas vão todos eles num mesmo sentido, exactamente o da mundialização de Fátima João Paulo II, ele que como peregrino foi a Fátima agradecer ter sobrevivido ao grave atentado que sofrera, diz em 1982 que “A mensagem que no ano de 1917 partiu de Fátima, considerada à luz do ensino da fé, contém em si a eterna verdade do Evangelho, como particularmente adaptada às necessidades da nossa época.” (cit. in Domingues, 1988: 56). Parece ser outra, porém, a leitura que é feita pelas elites católicas e pelo poder político em Portugal. Leitura instrumental por um lado - Fátima como sinal de conversão daqueles que se haviam afastado da religião - e, por outro lado, reecontro com os elementos fundamentais de um imaginário profundo, onde se inscrevia uma visão do mundo e a rota de um destino que devia transcender a pequenez objectiva de um país periférico que sonhava grandezas.

Professor Catedrático Moisés de Lemos Martins

- Presidente do Instituto de Ciências Sociais desde Janeiro de 2004, Moisés de Lemos Martins é Professor Catedrático de nomeação definitiva da Universidade do Minho desde 1998, trabalhando sobretudo nos domínios da Semiótica e da Sociologia da Cultura. Foi o Director do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS), desde a sua fundação, em 2002, até Julho de 2006, e é director da revista científica “Comunicação e Sociedade” desde 1999.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

O Catolicismo e a Construção da Identidade Nacional (Parte I)

"O seguinte artigo é de autoria de Moisés de Lemos Martins, Professor Catedrático de nomeação definitiva da Universidade do Minho, publicado em 2 de Junho de 2009 na Revista de Religião da Universidade de Minho."

1.A estrutura de um campo religioso

No contexto da sociologia da religião em Portugal, e especificamente no contexto da sociologia do catolicismo, poucos são os estudos que contrariam um persistente equívoco na avaliação da natureza do fenómeno religioso.
É, com efeito, frequente identificar a religiosidade do povo português com as manifestações sociais da religião maioritária em Portugal, ou seja, com as práticas religiosas do catolicismo. Acontece, no entanto, que nem o campo religioso se restringe em Portugal ao campo circunscrito pela religião católica, nem a religiosidade se esgota na sua dimensão de prática religiosa.
Que o campo religioso se não restringe em Portugal ao campo circunscrito pela religião católica é a tese que Moisés Espírito Santo tem procurado fundamentar já lá vão cerca de dez anos. Lembramos aqui sobretudo As origens orientais do religião popular portuguesa (1988) e as fontes remotas da cultura portuguesa (1989). E encontra-se no prelo um interessante ensaio, no mesmo sentido, de José Garrucho Martins, intitulado “o transe e as bruxas”. Dos nomes às práticas. Por outro lado, entendemos hoje por religiosidade “toda a manifestação, exterior ou interior, da relação entre a Divindade e o homem”, pelo que analisar apenas a prática religiosa consiste em reduzir o fenómeno religioso apenas àquilo que manifesta “a obediência exterior que uma pessoa ou grupo social prestam a certas obrigações (preceitos) ou a certos conselhos (devoções) dados por uma Igreja”. Um campo religioso supõe, é verdade, as várias dimensões da sua estrutura. E é possível hoje, com a ajuda dos trabalhos de Glock (1961), Stark e Glock (1968), Benveniste (1969), Bourdieu (1971), Michelat (1990 a, 1990 b), entre outros, identificar seis dimensões de análise. Uma dimensão experiencial, que contempla a comunicação com a divindade, e que é constituída pelos sentimentos, percepções e sensações religiosos, experimentados por um indivíduo. Uma dimensão ideológica, que incide sobre os pensamentos, sobre as representações da natureza da realidade divina. Uma dimensão ritual, que se reporta aos actos que os indivíduos cumprem no domínio religioso. Uma dimensão intelectual, que dá conta dos conhecimentos que os indivíduos têm dos dogmas que fundam a sua fé. Uma dimensão pragmática, que se relaciona com aquilo que os indivíduos fazem, assim como com as atitudes que tomam, em virtude dos conhecimentos, práticas, pensamentos e experiências que têm. Uma dimensão institucional, que considera o vínculo institucional que objectiva a religião, ou seja, que a oficializa. Esta última dimensão está estreitamente associada à etimologia religare, que com Lactâncio e Tertuliano vem substituir a mais antiga etimologia de relegere (uma hesitação que retém, um escrúpulo que impede, e não um sentimento que oriente para uma acção). Na acepção cristã, a religio é uma força exterior ao homem e é explicada em termos objectivos, dado que é o vínculo da piedade, isto é, uma dependência do fiel face a Deus, uma obrigação no sentido próprio da palavra.
Neste entendimento, ser católico é mais do que obedecer a uma prática religiosa. Ser católico, dizemo-lo com as palavras de Guy Michelat, “é pertencer a um grupo cujos membros possuem todos em comum, um sistema organizado de crenças, de práticas religiosas, de convicções, de sentimentos, de representações, de valores, etc., que se constituiu e se reformulou ao longo da história” (Michelat, 1990 b, II: 630). E vários são os graus de adesão ao sistema simbólico que constitui o catolicismo. Como aliás acontece com toda a identificação religiosa, a identificação católica tem como pólos extremos de adesão, por um lado a aceitação deste sistema simbólico na sua totalidade, por outro a mera reivindicação de uma identidade católica, ao arrepio de qualquer prática ou mesmo de qualquer sentimento religioso.

2. A prática religiosa católica e a definição da identidade nacional

Feitos estes esclarecimentos sobre a natureza do fenómeno religioso e sobre o que significa reivindicar uma pertença religiosa, assinalamos que datam do início dos anos oitenta os estudos que em Portugal avaliam a identidade nacional pela análise da prática religiosa católica.
O sociólogo jesuíta Augusto da Silva, publicou em 1979 “Prática religiosa dos católicos portugueses”, vindo a retomar parcialmente os resultados apurados neste estudo, em artigo feito de parceria com o seu confrade Vaz Pato, em 1981. E em 1981, foi o dominicano Luís de França quem também deu à estampa Comportamento Religioso da População Portuguesa.
Todos estes trabalhos utilizam sobretudo os dados apurados no recenseamento da prática religiosa dominical (assistência à missa, comunhões entre os assistentes, casamentos pela Igreja, baptismos), promovido pela Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), em Fevereiro de 1977. Desde logo, pelo tipo de dados de que dispõem, ficam os autores condicionados a seguir uma metodologia tradicional e, apesar do muito mérito do trabalho empreendido, vêem significativamente restringido o alcance da sua pesquisa.
Disso se dão conta Augusto da Silva e Vaz Pato. Sendo seu ensejo analisar “a realidade sócio-religiosa”, mas dispondo apenas de elementos relativos à prática religiosa, pressente-se neles algum mal-estar pela inadequação existente entre os meios que empregam e os objectivos que se propõem. Essa a razão por que se apressam a avisar da necessária distinção que há que fazer entre religiosidade e prática religiosa. E logo se fica a saber que não vão dar-nos conta da religiosidade em Portugal, isto é, que não vão dar-nos conta de “toda a manifestação, exterior ou interior, da relação entre a Divindade e o homem”
Limitar-se-ão a analisar “as manifestações sociais da religião do Povo português”, afinal a prática religiosa, que ‘apenas’ manifesta “a obediência exterior que uma pessoa ou grupo social prestam a certas obrigações (preceitos) ou a certos conselhos (devoções) dados por uma Igreja” .
O estudo de Luís de França, por sua vez, não manifesta este tipo de preocupações. O seu objectivo declarado é o de traçar o mapa da “sociologia religiosa contemporânea” em Portugal (França, 1981: 9). À semelhança, porém, do que acontece com os trabalhos de Augusto da Silva e Vaz Pato, Luís de França dá absoluto favor ao tratamento das práticas religiosas que exprimem a adesão à Igreja Católica.
Mas só na aparência é que há aqui uma verdadeira escolha. Por um lado, cerca de 95% dos portugueses confessar-se-iam católicos, em 1977 (não temos dúvidas de que se trata, no entanto, de uma percentagem demasiado optimista), o que ajuda a compreender que o catolicismo pudesse quase sem escândalo reclamar todo o campo religioso e apresentar -se como a religião dos portugueses, e por outro lado, eram inexistentes os dados relativos às práticas religiosas não católicas (França, 1981: 9).
Entretanto, em Março de 1991, passados catorze anos sobre a realização do pnmelro “recenseamento da prática dominical”, a Conferência Episcopal Portuguesa promoveu um segundo recenseamento, de que conhecemos o Relatório, com Resultados Preliminares (1994), da responsabilidade do Centro de Estudos Sócio-Pastorais da Universidade Católica Portuguesa.
Ficámos então a saber que 26 % dos portugueses, com idade igual ou superior a sete anos, participam na missa (Braga, que tinha 63,2% de praticantes em 1977, passa agora para 55,7%; Beja que tinha 2,9% passa para 6,2%; entretanto Setúbal passa de 4,2% para 5,6%, embora seja hoje a diocese do país com mais baixa percentagem de praticantes). Em termos gerais, de 1977 a 1991 os praticantes decrescem 3,10/03.
Não estão ainda apurados os resultados relativos às variáveis “baptizados” e “casamentos católicos”. Lembramos, no entanto, os últimos resultados conhecidos: 95% dos portugueses eram baptizados e 80% casavam-se catolicamente (Silva, 1979, retomado por Silva e Pato, 1981)4.
Pode assim dizer-se que, relativamente à década de setenta, é possível estabelecer com bastante exactidão o mapa da “geografia religiosa do país”, se por tal entendermos a distribuição da frequência às práticas religiosas (Silva, 1979; França, 1981)5. E para a década de noventa, já não andamos longe dos resultados obtidos por Augusto da Silva e Luís de França. Mas se descontamos o que acontece com as práticas, podemos dizer que permanecem por caracterizar os vários níveis de adesão dos portugueses ao sistema simbólico católico (representações, normas, valores, crenças, atitudes face à instituição).
É verdade que os resultados do último recenseamento promovido pela Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) confirmam uma relativa diminuição das práticas religiosas católicas, confirmando uma tendência que o começo dos anos 70 tornou manifesta. Estamos convencidos de que poderíamos dizer a mesma coisa das crenças religiosas, se porventura o inquérito da CEP incidisse nelas, o que não acontece. Mas, apesar da diminuição das práticas e da crenças religiosas, o novo recenseamento geral da população confirma, sem dúvida, a manutenção do sentimento de pertença ao catolicismo, como grupo cultural. Este facto, por si só, representa não apenas uma expressão de pertença subjectiva a um grupo, mas também uma expressão de pertença objectiva, pela adesão, ainda que em níveis variados, a um sistema simbólico.

3. Português, logo católico

Nos limites do enquadramento feito, quer dizer, uma vez dadas estas premissas, que identificam o grau de pertença ao catolicismo pela avaliação da prática religiosa, não choca concluirmos com o silogismo “português, logo católico”.
Claro que outras foram as razões que tomaram célebre este raciocínio. Salazar reconhecia que a adesão “aos princípios de uma só religião e aos ditames de uma só moral, digamos, a uniformidade católica do País”, tinha sido, através dos séculos, “um dos mais poderosos factores de unidade e coesão da Nação Portuguesa” (Salazar, 1951: 371). Daí que lhe interessasse “aproveitar o fenómeno religioso como elemento estabilizador da sociedade e reintegrar a Nação na linha histórica da sua unidade moral” (lbid.: 372-373). Quer dizer, a religião era, a seus olhos, “factor político da maior transcendência” (lbid. : 371).
Podemos dizer que todo o discurso sobre a identidade, seja ela de um país, região, grupo ou classe social, revela o campo de uma luta simbólica, onde o que se decide é quem tem o poder de definir a identidade e o poder de fazer conhecer e reconhecer a identidade definida (Bourdieu, 1980: 67). Ora o discurso salazarista sobre a identidade nacional visa tomar legítima a definição católica de identidade, pelos manifestos ganhos políticos daí resultantes.
A identidade indica, com efeito, aquilo sobre que se age para melhor constituir ou fazer reconhecer o grupo como unidade9
E no caso em apreço do discurso salazarista, age-se sobre a religião católica. Porque é um importante “factor de unidade e de coesão nacional”, a religião católica “é um factor político da maior transcendência”: reúne as condições que lhe permitem representar a identidade nacional.
Claro que a definição da nossa identidade católica não pode escamotear o modo de ser da realidade social. A identidade nacional, que é simultaneamente uma realidade instituída e uma realidade representada, é em ambos os casos o lugar simbólico de uma luta incessante pelo poder de divisão do mundo social. É que não há uma “essência” das nações, como ensina Eduardo Lourenço, “fora da luta equívoca para perenizar um ‘projecto’ de existência autónomo, ou maximamente autónomo, sempre ameaçado, do interior ou do exterior, pelas contradições ou fraquezas dos elementos que o compõem” (Lourenço, 1983: 16). Nunca, continua E. Lourenço, a identidade foi um dado em si, um mero atributo da existência histórica. Sempre a identidade foi esforço e luta por uma estruturação sem cessar posta em causa, afirmação de si com as mais diversas tonalidades, desde as eufóricas às suicidárias, tanto por causas ou motivos intrínsecos, como extrínsecos (Ibid.: 16).
É pois, a esta luz, como combate por um conceito católico de identidade nacional, como luta por uma específica ordenação simbólica do país, que devemos perspectivar a definição (di/visão) que Salazar fez do mundo português .

Professor Catedrático Moisés de Lemos Martins

- Presidente do Instituto de Ciências Sociais desde Janeiro de 2004, Moisés de Lemos Martins é Professor Catedrático de nomeação definitiva da Universidade do Minho desde 1998, trabalhando sobretudo nos domínios da Semiótica e da Sociologia da Cultura. Foi o Director do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS), desde a sua fundação, em 2002, até Julho de 2006, e é director da revista científica “Comunicação e Sociedade” desde 1999.