sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Laicidade dos Estados Modernos: Ser ou não ser?

Há poucas semanas temos assistido á um episódio que desencadeou uma grande repercussão, não só na Comunidade Européia, mas no mundo inteiro. Estamos falando sobre o caso de Soile Lautsi, cidadã italiana, de origem finlandesa, e mãe de dois filhos, um de 11 e outro de 13 anos. Como mãe de estudantes de uma escola pública italiana ao norte do país, o instituto público Vittorino da Feltre, localizado na cidade de Abano Terme na província italiana de Padova, Soile criticou, em 2006, a presença de crucifixos nas paredes da escola pública, recorrendo com uma ação contra a escola, que recusou-se em retirá-los das paredes. A Corte Constitucional da Itália rejeitou sua reclamação, reservando os direitos da escola em manter os crucifixos em suas paredes. Discordando veemente da decisão da escola e da Corte Constitucional italiana, a cidadã italiana acaba indo ás últimas conseqüências, recorrendo á Corte Européia sobre o caso. Então, estendendo-se até o início desde mês de Novembro, foi tomada uma decisão, da parte da Corte Européia, de que os crucifixos deveriam ser retirados das paredes da escola, e uma indenização de 5 mil euros, o equivalente á mais de 7 mil dólares e a mais de 13 mil reais, para Soile Lautsi, por danos morais.
Soile argumentou que, sobre os crucifixos nas escolas, eles violam os princípios da secularidade pela qual as instituições públicas deveriam zelar, tratando-se de instituições de estados ditos Laicos, e também o direito de oferta de uma educação secular ás crianças . A decisão da Corte Européia foi tomada com base nas afirmações alegadas pela própria, em nota oficial: "O tribunal não foi capaz de compreender como a exibição, em salas de aula nas escolas do Estado, de um símbolo que pode razoavelmente ser associado com o catolicismo --religião majoritária na Itália-- poderia servir ao pluralismo educacional que foi essencial para a preservação de uma 'sociedade democrática' como foi concebido pela Convenção [Européia dos Direitos do Homem, de 1950], um pluralismo que foi reconhecido pelo Tribunal Constitucional italiano" . Já grande parte do povo italiano, ou seja, 87,8% da população que se denomina católica, repreendeu a decisão da Corte Européia em vetar a presença de crucifixos nas escolas públicas do país. Na cidade de Roma, o advogado Nicola Lettieri, que defendeu Roma no julgamento, disse que o governo apelará contra a decisão da comunidade, e até o caso ser decidido oficialmente, os crucifixos continuarão a marcar presença nas escolas italianas. Até a ministra italiana da Educação, Mariastella Gelmini, protestou contra o ocorrido, afirmando que o crucifixo "é um símbolo de nossa tradição". O premiere italiano, Silvio Berlusconi, também impôs uma postura rígida diante das circunstâncias: “Não é uma sentença coercitiva. Não há nenhuma possibilidade de coerção que nos impeça de manter os crucifixos nas salas de aula independentemente do sucesso do recurso ”, afirmou ele. Esta decisão, como era de se esperar, gerou duras críticas entre membros da Igreja Católica. O cardeal de Cracóvia, na Polônia, e ex-secretário pessoal de João Paulo II, Stanislaw Dsiwisz, classificou a sentença de "incompreensível" e disse que ela suscita "sérias preocupações para o futuro da liberdade religiosa na Europa" .
Primeiro, daremos uma olhada em alguns conceitos pertinentes á discussão apresentada. Termos como “laico” e “secular” foram largamente usados, seja pelos jornalistas que acompanharam o caso, seja pela própria Sra. Lautsi, personagem principal do caso. Busquemos o significado do termo “secularização” nos autores Paula Monteiro e Flávio Pierucci. Enquanto Monteiro afirma, em seu artigo “Max Weber e os dilemas da secularização” que é quando “(...)a religião deixa de legitimar as estruturas sociais(...)”, ou seja, é o fato de a Religião deixar seu papel como organizador e legitimador da sociedade tal como ela se apresenta; enquanto para Pierucci o termo significa nada mais do que “(...)a realocação da religião e divisão da sociedade em esferas(...)”, portanto, dividindo a sociedade em esferas “privadas” e “públicas”, aonde a Religião teria seu lugar reservado na esfera privada, retirando-a do cenário público, como descrito em seu artigo “Reencantamento e Dessecularização”. Ambas as definições são muito semelhantes, uma vez que os dois autores concordam acerca da “secularização” e “desencantamento” enquanto uma leitura Weberiana onde o primeiro trata-se de um processo de diferenciação da política e religião, e o segundo de uma eliminação da magia como meio de salvação, e, por conseguinte, de explicação do mundo. Vale lembrar que o uso destes conceitos estão intimamente ligados com um outro conceito, o de “mundo moderno”, ou seja, o mundo como ele se apresenta a partir de mudanças sociais que acarretaram, por exemplo, no Renascimento Cultural durante fins do século XV, ou até mesmo o grande momento de democracia e humanização que representou a Revolução Francesa em fins do século XVIII.
Considerando então o caso apresentado no começo deste artigo, busquemos o sentido do termo “secularização” para a Itália moderna. De acordo com a constituição italiana atual, o estado pode ser considerado um “estado laico”, ou seja, com uma separação visível entre a Política do Estado e qualquer tipo de envolvimento com a Religião . Então, podemos considerar de que a Itália é um país laico, aonde a sua educação deve ser secular, por lei federal. Porém é visto que, no ano de 1920, durante a época do fascismo, que as escolas deviam ter crucifixos, apesar disso não ser aplicado estritamente desde 1984, quando o catolicismo deixou de ser religião de Estado .
Em várias afirmações de membros da Igreja Católica e da população local, como descrito em todos os jornais que serviram como fonte para este artigo, é comum assistir uma postura tradicional, como em argumentos como “o uso dos crucifixos nas escolas detém a tradição italiana”, ou até “o crucifixo nas paredes das escolas é um símbolo do povo italiano e sua tradição.” Ora, tratando-se do berço do Cristianismo, remontando não somente á época em que o cristianismo era um culto local e clandestino, mas também á instituição do mesmo como religião oficial do Império Romano pelo imperador Constantino e justificado pelo Concílio de Nicéia em 325 AD, não é de se admirar que o povo italiano se revoltasse com esta decisão. Lembremo-nos também que mais de ¾ da população italiana pertence a fé católica. Neste ponto, invoco a escritora francesa Danielle Hervieu-Léger e seu “O Peregrino e o Convertido” para argumentar que a sociedade, ao contrário do Estado, não é laicizado na prática: “(...)nas sociedades modernas, a crença não é lei, e sim opção pessoal. Portanto, não se trata de uma ‘sociedade laicizada’ ” . Portanto, é plausível e até normal, que a população se sinta ofendida pela decisão tomada pela Corte Européia.
Tal fato se explica, aproveitando o banho de conceitos que estamos revendo, por um outro processo, o de “privatização” da religião. Entende-se por privatização, nos conceitos dados por José Casanova em seu “Religiones Públicas en el Mundo Moderno”, o isolamento da religião em uma esfera só sua, sem contato com a esfera política , não sendo assim mais um elemento organizador da sociedade moderna. Portanto, á religião é reservada a idéia de “esfera privada”, e á política, a “esfera pública”, de acordo com as idéias de Paula Monteiro sobre “esferas”. É visível também no autor a idéia de “desprivatização”, da qual seria a recusa da parte das religiões do mundo moderno em aceitar seu papel marginal reservado pela própria modernidade. Para Casanova, a “desprivatização” é um ocorrido comum na modernidade, e ocorre de modo global. Ora, de acordo com o caso observado acima, podemos supor que é impossível a religião na Itália passar pelo processo de “desprivatização”, uma vez que esta nunca foi “privatizada”. Nem nos tempos áureos do fascismo, onde foi proposta a primeira separação entre Estado e Igreja em 1921, a religião deixou o cenário político, onde, como dito anteriormente, foi posta a uma lei em que os crucifixos passariam a ser obrigatórios nas escolas italianas. Também podemos afirmar, com muita cautela , que a religião servia como um instrumento nas mãos da elite para organizar e manipular as massas durante o regime fascista.
Depois deste longo discurso teórico, algumas considerações finais devem ser dadas sobre o “caso Lautsi”. É inegável o fato de que estamos vivendo em um mundo moderno onde, teoricamente, a religião estaria reservada apenas á esfera privada, tal como previa os ideais da Revolução Francesa, ditando a ordem ocidental moderna. Porém, não é isto que estamos assistindo, e sim um mundo cada vez mais “dessecularizados”, ou como muitos cientistas da religião dizem, “reencantado”. Rússia, Brasil e Itália são exemplos ótimos para expressar o que queremos dizer.
Enfim, acima de tudo, vivemos em um mundo democrático (pelo menos sem considerar regimes teocráticos), aonde é a maioria que decide sobre quais medidas um país pode ou não pode tomar para si mesmo. Apelando também para a soberania nacional, apesar de muitas vezes esta não ser respeitada, o correto seria o caso da Itália e os crucifixos não sair dos limites nacionais, que, para infelicidade de alguns e a felicidade de muitos, lida muito bem com o fato de terem crucifixos em suas escolas. Mesmo que a Lei dos Homens é a que impera neste mundo moderno, e que de acordo com essa lei, religião e política devem manter uma boa e amigável distância, não nos esquecemos do seguinte: a voz do povo é a voz de Deus.

Por Fernando Tetsuo Miyahira.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Graduados afirmam: Ciência da religião não é teologia

Este artigo é de autoria de Gilmar Gonçalves da Costa, mestrando em Ciências da Religião da PUC - SP, e foi publicado no jornal "O Norte de Minas", de 20/10/2009.


O Professor de Geografia e Ensino Religioso do Ensino Fundamental da cidade de Bocaiúva/MG e Mestrando em Ciência da Religião da PUC/SP - Universidade Católica de São Paulo, Gilmar Gonçalves da Costa, escreveu para a redação de O Norte levantando uma polêmica, segundo ele ciências da religião não é o mesmo que teologia. De acordo com Gilmar especialista na área a população confunde os temas e a maioria vê os temas como um só. Acompanhe o que escreveu sobre o assunto com exclusividade para O Norte.

- Quando comuniquei a minha mãe que eu havia passado no Vestibular da Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES), para o Curso de Ciência da Religião, ela disse: “graças a Deus meu filho, assim você ficará mais próximo do Senhor nosso Pai”. Durante o Curso, andando pelo centro da cidade de Montes Claros, algumas pessoas amigas me cumprimentaram pela ótima escolha do Curso. Isso porque, segundo eles, eu estaria estudando com objetivo de levar a palavra de Deus ao irmão, ou seja, evangelizar. Com isso foi possível deduzir que, várias pessoas procuram o Curso Ciência da Religião acreditando que este é um Curso de Teologia. Uma coisa não tem nada a ver com outra. Em outras palavras, como diria Habermas, saber o que se fala, o que se faz ou o que se procura, sempre ajuda nos avanços intelectuais e até mesmo pessoais no cotidiano. Durante a minha Graduação em Ciência da Religião, muitas pessoas, até mesmo com graduação e mestrado citam que, simpatizam com o Curso Ciência da Religião por acreditarem que este Curso investiga a revelação ou essência do Sagrado. Gostaria de salientar que, a Ciência da Religião examina os processos religiosos e a incidência da religião no modo de vida social, ou seja, analisa os fatos sociais, psicológicos, históricos, geográficos, econômicos, estéticos e fisiológicos aplicados à religião. Enquanto que, a Teologia é o estudo sobre Deus – epifania do Sagrado. Assim, há um enorme distanciamento entre essas duas Disciplinas. Diante disso é importante que, o interessado em Ciência da Religião esteja esclarecido do que aborda este Curso e o método de pesquisa do mesmo. Por natureza, esta é uma Ciência empírica – prática em face às questões teóricas, que devem estar inseridas dentro da dimensão metateórica (análise de teorias) e não a partir de uma simples e ingênua interpretação pessoal confessional. Os processos teológicos marcam os estudos das religiões, sobretudo nos países que foram colonizados por uma política religiosa judáica – cristã, mas o mundo sente essa pressão e chama a atenção de que, é preciso distanciar das meras questões teológicas nos estudos acadêmicos aplicados à religião. Portanto, o estudante ou pesquisador de religião deve estar atento com os objetivos e métodos da Ciência da Religião, e deixar a revelação do sagrado – ou essência da religião, para os Teólogos e seus subjacentes. Ainda, aqueles curiosos ou interessados em cursar a Graduação e, ou a Pós-Graduação em Ciência da Religião é interessante que investigue as ementas e o programa curricular do Curso, objetivando verificar possíveis tendências de práticas religiosas, às quais poderão implicar confessionalmente nos estudos acadêmicos da religião, o que é irrelevante para as análises acadêmicas da Religião. Assim, pois, faz-se necessário que o estudante/pesquisador de religião se preocupe em distinguir estas duas perspectivas de investigação, para que o ensino religioso nas escolas públicas brasileiras supere seus antigos significados e avancem nos dilemas da religião.

Postado por Fernando Tetsuo Miyahira, com autorização de Gilmar Gonçalves da Costa.