quinta-feira, 14 de abril de 2011

Sincretismo religioso na Nova Espanha

O artigo aqui apresentado é um trecho de minha monografia de graduação, entitulado "A Igreja Católica Espanhola: da Reconquista ao Novo Mundo", orientado pelo Prof. Dr. Gilberto Lopez Teixeira e apresentado no Centro Universitário "Fundação Santo André", no ano de 2008.

Mesmo com toda a experiência obtida com os Mouros durante as guerras da Reconquista, podemos afirmar que foi em Nova Espanha que a Igreja e o Estado espanhóis acabam lançando uma enorme sujeição da população local em prol da “dominação” espanhola, criando um gênero de vida único e uniforme. Como vimos, Bernardino de Sahagún dizia que o sincretismo não causaria uma perda enorme apenas para a fé católica, mas também para a cultura do povo asteca em geral. Hoje podemos ver com clareza que não foi bem assim.

As duas sociedades foram postas em contato pelas ações da Conquista, fazendo com que se enfrentassem não apenas no plano religioso e político, mas também em um plano mais global, ou seja, no domínio de suas respectivas percepções do real. Entretanto, nem por isso, nem pelas ações dos franciscanos e dominicanos devemos considerar que as massas estivessem completamente cristianizadas. Gruzinski afirma em sua obra que “os rituais da Igreja coexistiam, em muitos lugares, com práticas autóctones ”. Isso porque, além de documentos, livros e Códices, também existia outra fonte sobre a cultura e religião dos Astecas: os anciões. A simples presença destes “detentores da tradição” implicava persistências claras do modo de vida claras, afinal, eles eram o ícone de respeito e sabedoria. De qualquer forma, o domínio público cristão foi muito mais eficiente do que na esfera individual. Isso porque a Igreja dificilmente tinha como se aproximar do indivíduo. Seus ritos, como o da confissão, batismo, matrimônio, segundo Gruzinski, pouco afetava a vida pessoal das pessoas, estas acostumadas com a coexistência de culturas diferentes desde muito antes da chegada dos espanhóis católicos. Com certeza a influência familiar era maior do que a das doutrinas cristãs; portanto possivelmente parece mais importante. E finalmente, podemos contar com o fato de que os altares domésticos deram lugares às imagens cristãs, porém ainda continua sendo na esfera individual.

Podemos perceber a persistência da idolatria, primeiramente, na manifestação deste ambiente doméstico. Por exemplo, documentos de época de freis e clérigos evangelizadores, como José Villaseñor, contam que na cidade de Morelos, índios e índias escondiam nos altares de suas casas cestos, às vezes lacrados à chave, contendo estatuetas familiares, pulseiras, brinquedos infantis, pedras coloridas e até plantas alucinógenas usadas em rituais pagãos. Estes cestos recebiam o nome de tlaquimilolli, ou em nahuatl, “pacotes-relicários”, que serviam para selar a aliança do povo terreno com seu deus tutelar, ou seja, protetor pessoal, familiar ou até mesmo da aldeia em questão. Estes pacotes então nos mostram dois eixos da idolatria: a manutenção de uma relação com os ancestrais, que o cristianismo negava ao afirmar que os antepassados pagãos do povo asteca “ardiam nas chamas do inferno”, pois eram hereges aos seus olhos, e a intermediação, ou seja, a intervenção de um objeto que não é uma imagem e não poderia ser visto, pois estava lacrado, mas mesmo assim produzia um apego pessoal imenso comparando-se com o poder das imagens e “ídolos” dos cristãos. Isto confirma claramente a manutenção, persistência da idolatria em um lugar que, teoricamente, teria de ser totalmente conquistado pelo modo de ver o mundo; pela mentalidade católica.

Isto não era algo que os cristianizadores tinham em mente. Por isso o aspecto mais peculiar de todo o processo conquistador espanhol é, provavelmente, o fato de romperem com o padrão de pensamento nativo, pois acabaram por introduzir outras percepções do real que não eram usados por estes índios. Com efeito, os evangelizadores queriam que os índios aderissem ao sobrenatural cristão, sem considerar grande parte de sua cultura e sua mentalidade. É justamente por esta “vontade de cristianizar” que surge os mal-entendidos culturais do século XVI. Por exemplo, segundo Gruzinski, cada povo estava tão mergulhado em seu imaginário que “(...) os índios acreditavam que Cortéz era a reencarnação do deus Quetzalcoatl que voltara para tomar seu reino de volta, enquanto os cristãos tomaram os deuses pagãos por criaturas surgidas de Satanás ”. É exatamente no fato de a Igreja desejar que os índios conhecessem termos e conceitos cristãos para evitar este tipo de mal-entendido que há a raiz do sincretismo cultural no México.

O inferno cristão escolhido entre a cultura asteca, por exemplo, era o Mictlán, ou a morada dos mortos, ainda por cima gelada. O céu foi denominado o Ilhuicatl, ou o conjunto de mundos além-túmulo composto por treze níveis. Deus ficou “sendo” Ometéotl, da qual Quetzalcoatl é uma de suas formas, enquanto a Virgem Maria foi vista nas imagens de Tonantzin, ou uma das formas da deusa-mãe Asteca. Até mesmo os primeiros religiosos que agiram no México foram confundidos com xamãs: suas visões que transcreviam milagres ou de santos que vinham se comunicar com estes clérigos eram muitas vezes interpretadas, pelos índios, como as visões xamânicas de seus feiticeiros, por exemplo, as profecias dos sábios de Montezuma prevendo o fim do império Asteca. Porém, deve-se acrescentar que estas visões dos xamãs, diferentes das visões dos clérigos cristãos eram provocadas por drogas alucinógenas ou plantas medicinais com fins terapêuticos.

Contudo, não podemos afirmar que esta relação teve impacto somente sobre os indígenas. Muito pelo contrário, acabou afetando também a crença dos espanhóis ou outros europeus que haviam se estabelecido nas terras americanas. Gruzinski ainda afirma que alguns espaços que escapavam da interpretação cristã e da interpretação idólatra. Era exatamente estes espaços que acabaram tomando não toda, mas uma parte considerável do imaginário mexicano durante o século XVI. Trata-se das chamadas “magias coloniais”, que eram práticas de pactos com demônios, adivinhações, leitura de partes do corpo ou cartas praticadas por negros, espanhóis, índios e mestiços. Contrariamente à idolatria e ao cristianismo, as magias coloniais não se baseavam em uma concepção relativamente homogênea do mundo. Ou seja, ela sofria influência de todos os lados: tanto em suas raízes - sejam elas consideradas heresias na Europa, sejam consideradas “excêntricas” pelos nativos americanos - quanto nas práticas, recebiam forte influência das práticas xamânicas da idolatria como da crença em santos cristãos. Por exemplo, nos Anales de Tlateloco, uma compilação de manuscritos e códices Astecas temos registros que foram traduzidos por especialistas como cartas de tarô ciganas, porém com imagens de santos, como São Tomás e a Virgem Maria.

Outra característica do sincretismo na América durante este período era a aparição de características cristãs nas visões de índios nativos. Por exemplo, Gruzinski relata que Domingos Hernández, um índio de Tlaltizapán, uma aldeia naua localizada no centro da região de Cuernavaca, na margem direita do rio Yautepac, adquiriu a fama de Santo por ter visões que, segundo as crenças locais, eram capazes de capacitá-lo a curar doenças . Resumidamente, o relato passa-se na casa, nos seus supostos momentos finais. Agonizando por três dias devido a “muita bebedeira”, relata ter sido procurado por duas pessoas vestidas por túnicas brancas e levado para muito longe de sua casa. Lá, os três curaram alguns doentes, que também estavam em seus últimos momentos, “(...) soprando-lhes ar nas ventas ”. Depois, teve visões de dois caminhos; um largo onde passavam muitas pessoas, e acabava terminando no Purgatório, e um estreito, que terminava com muita luz. Escolhendo o segundo caminho, acorda em sua casa, cercado por três damas vestidas de branco, que segundo Domingos eram a Virgem Nossa Senhora, Verônica, e outra que não se identificou. A partir deste dia, sentiu-se bem e começou a ajudar as pessoas que estavam muito doentes.

Ou seja, este é um exemplo de relato que era comum nesta época. De um lado, porque se trata claramente de um tipo de iniciação xamânica, fora de qualquer controle eclesiástico. Do outro, porque as visões ocorrem com presença de características cristãs: o Purgatório, os dois caminhos seguidos pelas almas, uma para salvação e outra para a danação, e principalmente pela aparição da Virgem Nossa Senhora. Em suma, o que o índio Domingos presenciou foi uma visão tipicamente idólatra, porém impregnada com elementos cristãos, resultado dos esforços dos clérigos evangelizadores espanhóis.

Bibliografia:
Anales de Tlatelolco. In: "Corpus Codicum Americanorum Medii Aevi". Edição de Einar Munksgaard, Copenhague, 1945, tomo II.
GRUZINSKI, Serge. A Colonização do Imaginário. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2003.