quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Características das Fontes Textuais do Novo Testamento

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Entender o cristianismo primitivo é um esforço que exige acompanhar o desenrolar de uma série de fatores paralelos ao longo de muitos séculos, dentre estes fatores, a formação textual cristã. É muito interessante observar o processo de formação textual que ocorre paralelamente ao processo de desenvolvimento político e estrutural da Igreja. Acredito que esse capítulo seja de suma importância para a compreensão deste trabalho como um todo, pois aqui estão as informações documentais, necessárias antes de se iniciar qualquer aprofundamento analítico sobre qualquer assunto.
É certo que as idéias que existem no senso comum a respeito da Bíblia, seus escritos, sua história, suas versões, sua composição, atrapalham demais o entendimento do cristianismo do ponto de vista laico e histórico. Tendo em vista que esse livro é o assentamento de toda a religião cristã, fica claro que ninguém pretende que se questione o que “está escrito”, já que colocar em questão a veracidade e a legitimidade da Bíblia é perigoso para a fé. Seria necessário rever toda a religião ocidental caso uma corrente não ortodoxa viesse a ganhar espaço na opinião pública. Geralmente, as histórias tradicionais que dão significado à tradição cristã, estão impregnadas de lendas. Como sabemos, no princípio das coisas, a história se mistura ao mito, o onipresente “mito da origem”.
Em nossa civilização o mito cristão perdeu sua qualidade explicativa alegórica e se revestiu com o manto da verdade absoluta, inquestionável, tornando-se dogma, pois ele serve como respaldo a uma ordem estabelecida que não deseja mudar. O dogma é a segurança da fé, e interpretar os mitos seria revelar a metáfora do dogma. Mas, se nos dispomos a entender de fato a história da religião que fundou o ocidente, temos que encarar esse problema.
Por isso é necessário fazer uma investigação a respeito dos escritos cristãos, saber como, quando, onde, por quem, e por que foram escritos. Entender o processo pelo qual os livros cristãos foram sendo produzidos e reproduzidos equivale a entender as motivações ideológicas e políticas que dirigiram esse processo. Eis a maneira, que julgo a mais segura, que eu encontrei de compreender o que foi o cristianismo primitivo e sua evolução histórica.
O que chama a atenção inicialmente é o fato que a Bíblia não é um trabalho único, monolítico, mas são vários trabalhos associados. Os livros que compõem a Bíblia, diferente do que afirma e pensam os religiosos, não constituem em si uma unidade teológica perfeita. Em geral os religiosos afirmam que a bíblia possui a condição de “inspirada por Deus”, e que a união de seus livros indicaria uma “harmoniosa Vontade Divina”, organizadora das Escrituras, que transpassa as individualidades dos autores e as singularidades históricas, e unem o conjunto em um Corpus coerente, a “Palavra de Deus”. Essa visão pouco crítica do texto bíblico se mostra por si inconsistente, pois a “inspiração divina” não é um argumento historicamente válido. De fato a Bíblia só conseguiu um status mais ou menos harmônico após muitos séculos de revisão textual. Apesar de este trabalho não entrar no mérito da discussão da Bíblia em si (mas de alguns livros que a compõe), é necessário esclarecer que cada livro, ou conjunto de livros, foram escritos por autores diferentes, em diferentes tempos históricos, em diferentes contextos, em diferentes estilos, sob influências culturais e políticas diferentes, e, conseqüentemente, sob diferentes ópticas teológicas. Quando se trata do Novo Testamento essas dificuldades se alargam bastante, e passamos a trabalhar com várias tradições de um mesmo texto.
O Novo Testamento apresenta quatro evangelhos, quatro versões da vida, ensinamentos, feitos, e paixão do Cristo. Este formato foi historicamente sendo construído, e seu aspecto quádruplo indica uma variedade de tradições orais e textuais que se fundiram em diferentes evangelhos. Apenas o fato de possuirmos quatro versões diferentes da vida e obra de Jesus Cristo, já nos indica que nem tudo era consensual, nem tudo era monoliticamente harmônico como se poderia acreditar. Entender as nuances desses livros, suas características e suas diferenças, ajuda muito a entender e reconstruir a história do cristianismo primitivo.
Entretanto esses quatro evangelhos não são os únicos que foram escritos, e muitos outros evangelhos interessantes, tal como o Evangelho de Tomé, o Evangelho de Pedro, o Evangelho Segundo Felipe, e Evangelho da Verdade, ou o Evangelho de Valentino , poderiam ser estudados como parte do mesmo processo histórico. Apesar de parecer um corpo monolítico, esses quatro evangelhos canônicos possuem diferenças entre si, que só podem ser notadas e desenvolvidas ao se compreender os textos individualmente em seus contextos, e depois comparando-os entre si. Não se busca aqui, entretanto, encontrar um sentido original do texto, mas sim, por meio de indícios, muitas vezes idéias implícitas, ou detalhes a que não se deu muita atenção, poder reconstruir as idéias e intenções que nortearam os processos de formação de tais textos. As discordâncias entre esses quatro textos não são decorrentes de erros posteriores dos copistas, nem exclusivamente de enganos casuais na tradição oral, mas sim principalmente de visões ideológicas diferentes.

Características das Fontes Textuais do Cristianismo

Acredito que, pela dificuldade do assunto, seja necessário, antes de passarmos a tratar das fontes textuais, apresentar alguns esclarecimentos sobre elas. Para podermos acompanhar o desenvolvimento lógico das conclusões acerca das tradições documentais do cristianismo, é necessário estar familiarizado com as seguintes informações:
1- Não há, dentre todos os documentos textuais relativos ao cristianismo primitivo, um único texto que tenha sobrevivido no original. Ou seja, não há um único “autógrafo” preservado nos dias de hoje.
2- As cópias mais antigas remanescentes são todas de períodos muito posteriores ao período em que os documentos foram de fato produzidos, quase sempre mais de 200 anos, e muitas vezes bem mais que isso .
3- Toda a abundante fonte textual cristã, inicia-se abruptamente no início do século III d.C , não existindo nada preservado anterior a isso, a não ser retalhos de manuscritos, pouco importantes para a crítica textual, datados do século II d.C.
4- As datações que estabelecemos aos originais são sempre estimadas, baseadas em referências cruzadas de diversas fontes diferentes, e de variáveis de um mesmo tipo de fonte. Não temos certeza absoluta das datas de composições dos textos, mas devemos sempre usar o bom senso e rejeitar as datas artificiais e dogmáticas demais.
5- Esses manuscritos dispõem-se em dois tipos de escrita: minúsculos e unciais. O manuscrito uncial é mais antigo, escrito todo em letras maiúsculas, e sem separação entre as palavras, o que dificulta muito seu entendimento e reconstrução, mas são certamente os mais valiosos. Os manuscritos minúsculos são escritos em letras maiúsculas e minúsculas, e apresentam espaçamento entre as palavras. Esses representam um desenvolvimento posterior do cristianismo (século VI em diante), e são menos importantes que os unciais.
6- A corrupção textual é um fato. Temos que ter em mente que um documento “original” (se existisse algum à disposição) nunca possuiria a mesma configuração de suas versões posteriores preservadas. Ou seja, os textos não chegaram a nós da maneira como eles eram originalmente, pois foram sendo alterados ao longo de mais de quatro séculos (ou mais). É por isso que é muito complicado inferir informações apenas com base em um apontamento do texto, principalmente se for de textos medievais ou posteriores. Nenhum documento pode ser examinado sem um método crítico.
7- As alterações textuais são de três tipos: acidentais, estilísticas e doutrinárias. De todas essas mudanças, é claro que as mais significativas para o conteúdo do cristianismo, e para o direcionamento da Igreja, foram as mudanças dogmáticas.
8- Os primeiros 100 anos de existência de um documento é geralmente o período de maior alteração textual . Esse é justamente o período do qual não temos nenhuma informação sobre seu desenvolvimento textual (item 2).
9- Geralmente um mesmo documento possui muitas versões diferentes, e quanto mais próximos dos originais, mas discordantes as fontes se tornam.
10- As versões mais antigas e mais recentes de um mesmo documento preservado geralmente discordam, principalmente dos documentos canônicos como os evangelhos.
11- Os manuscritos mais antigos geralmente estão preservados em grego, latim arcaico, copta ou armênio. Porém, manuscritos gregos são usados como fonte relativamente confiável em comparação a manuscritos em outras línguas.
12- Existem dois tipos de materiais nos quais estão dispostos: papiro e pergaminho. O papiro é produzido em fibra vegetal, e muito usado nos primeiros séculos. O papiro foi substituído pelo pergaminho (couro animal) conforme a Igreja tornou-se rica e poderosa, principalmente com a oficialização do cristianismo pós-Constantino. Este imperador encomendou, em 331 d.C cinqüenta manuscritos da Bíblia para serem usados nas igrejas de Constantinopla, todos em pergaminho . A escrita em pergaminho representa, portanto, essa “nova fase” da Igreja, que conduz a um desenvolvimento teológico e estilístico mais aproximado da tradição ortodoxa . No Egito o papiro ainda permaneceu por alguns séculos, mas foi por fim completamente substituído.
13- Toda a Bíblia atual deriva do Textus Receptus de Erasmo de Roterdã. Esse texto foi traduzido a partir de manuscritos gregos medievais, posteriores ao século XII, que são o ápice de toda a revisão textual ortodoxa, e conseqüentemente pouco semelhantes aos manuscritos mais antigos, que por sua vez são pouco semelhantes aos originais.
Com base nesse prévio entendimento do estado e das condições das fontes, imagino ser possível iniciar uma análise coerente sobre o cristianismo primitivo.