terça-feira, 1 de junho de 2010

Iconografia do Dogma Trinitário Cristão

O seguinte artigo é de autoria de Michel Fares Bridi, ex-aluno de Ciências da Religião da PUC-SP e colunista do site "Ecclesia Brasil", da Arquidiocese Ortodoxa Grega de Buenos Aires e América do Sul.

SANTÍSSIMA TRINDADE - Uma Interpretação Iconográfica
do Dogma Trinitário


• A arte iconográfica

O ícone (do grego έικώυ = imagem, retrato, semelhança), quadro pintado sobre a madeira com a utilização de matérias naturais, rico em teologia e em catequese bíblica, tem sua origem milenar no mundo grego e russo.

Trata-se da típica arte sacra e canônica da Igreja Ortodoxa.

Há regras fixas para se reproduzir um ícone, tais como jejum, orações, conhecimento da Escritura, da Tradição, do Magistério etc.

O ícone é uma imagem, mas nem toda imagem é um ícone. É muito mais que uma livre representação de um mistério, deixada por conta da imaginação do artista; não se trata daquele espiritual fruto da sensibilidade, das divagações subjetivas e dos insípidos gostos pouco claros; não é um retrato no sentido moderno, secularizado e pouco transcendente. Ao contrário, sua linguagem é simples e visa somente a glorificação do mistério. De fato, o ícone é celebração do mistério de nossa salvação – Encarnação, Morte, e Ressurreição; por isso, instrução aos fiéis.

O ícone é glorificação e cântico nas suas cores, verso que se proclama na ponta do pincel, se ligado às regras. Isso não significa que se trata de uma arte fria ou pré-determinada que não aceita evolução, pois, olhando vários ícones representando o mesmo assunto reparamos que, mesmo sendo parecidos, são diferentes; não se encontra uma pintura semelhante à outra. Cada quadro tem sua individualidade, destacando-se o estilo de cada artista nos diversos países onde se divulgou a iconografia. Apesar da distância cronológica e geográfica e da falta de comunicação entre eles, se manteve o tema de uma forma fixa (isento de modificação), embora a criação se apresente de modo diferente. No ícone há vida e movimento interno, majestade, tranqüilidade, harmonia e interior perfeito,e isso faz a diferença entre ele e as pinturas tradicionais; o ícone tem o intuito de transmitir a profundidade celeste.

Após o ícone ser pintado, ele é consagrado. Na Igreja há orações específicas para a consagração dos ícones onde o Sacerdote diz:

“Ó Senhor, Deus Divino. Tu criaste o ser humano à Tua imagem e semelhança, porém a tentação o fez cair. Mas a encarnação de Cristo que tomou nossa forma humana renovou a imagem impura devolvendo a Luz a seus Santos, restituindo-lhes a dignidade. Porem, nós, ao venerarmos a suas imagens, veneramos a Tua; através deles e glorificamos a Ti que é o exemplo maior”. [1]

I . 1 - Finalidade do ícone

A iconografia cristã, por sua natureza, é semelhante a uma escola de oração e purificação interior que tem por objetivo favorecer um encontro sempre mais claro e sincero com Jesus e sua Igreja.

A técnica da pintura bizantina é somente o terreno onde se cultiva e se desenvolve o mistério de tal encontro. A missão do iconógrafo é a de tornar visível e tangível a “Verdadeira Beleza”, escondida no mistério silencioso das Escrituras. Nesse caminho, ele não está só, mas em companhia de uma tradição de santos que o precedem e o ajudam no longo caminho de sua existência. Segundo a Igreja oriental, o iconógrafo é chamado a tornar sagrado tanto o conteúdo quanto a forma de sua pintura; por isso a obra que sai de suas mãos deve encontrar analogia nas Escrituras e na Tradição dos Santos Padres. Como encontramos no VII Concílio Ecumênico de Nicéia. “A ele cabe somente o aspecto técnico, porque toda a elaboração do ícone provém dos Santos Padres”. [2]


I . 2 - Quem é e como vive um iconógrafo?


O dia do iconógrafo começa cedo. Logo que se levanta pela misericórdia e a sabedoria de Deus, se dedica a fazer uma meditação da Escritura, contemplando um ícone de Cristo ou da Virgem Maria. Antes de começar o sagrado trabalho de pintura, ele faz uma das orações próprias do iconógrafo, das quais a mais famosa é:

“Oh! Divino Mestre, Ardoroso artífice de toda a criação. ilumina o olhar do teu servo, guarda o seu coração, rege e governa a sua mão para que dignamente e com perfeição, possa representar a tua santa imagem. Para a Glória, a Alegria e a Beleza da Tua Santa Igreja”.[3]

Ele deve ser responsável e fiel ao reproduzir um modelo ou criá-lo, conforme a Escritura, a Tradição e a Doutrina da Igreja. O que o sacerdote significa no Santo Oficio, assim também é o pintor de ícone, ao transformar a divina liturgia, por meio de cores, sobre a tábua. Em sua vida diária, deverá cultivar os valores mais altos, tais como a humildade e a caridade, procurando viver em paz e corretamente, evitando as conversas frívolas e as vaidades mundanas. Deverá jejuar e orar antes e durante o trabalho, seguindo as normas da Igreja, pois somente se sua fé for autêntica e a sua mente estiver sempre vigilante na oração é que a sua obra poderá transmitir uma mensagem àqueles que a contenmplarão.

É recomendável que ele tenha um bom diretor espiritual e um padre confessor para não cair no pecado da soberba, ao levar muito alto a mente e o coração a Deus. Que siga a técnica pictória dos grandes mestres iconógrafos (emulsão a ovo, terras, minerais etc) da qual já foi comprovada a estabilidade, beleza e resistência ao longo dos séculos.

Ele nunca deverá esquecer que, com o seu ícone, ele serve ao Senhor, comunicando e cantando sua glória; e para os fiéis, o ícone serve para a contemplação dos mistérios.

Para destacar o Belo é preciso ir além do olhar, atingir a perfeita harmonia e, em última análise, suscitar a oração.

Dentro dessa linha, recordo a carta de João Paulo II aos artistas:

Este mundo no qual vivemos precisa da beleza, para não cair no desespero. A beleza com a verdade, dá alegria ao coração dos homens e é fruto precioso que resiste ao desgaste do tempo, que une as gerações e as faz comunicar na admiração. (...) Nobre mistério aquele dos artistas, quando as suas obras são capazes de refletir, em qualquer modo, a infinita beleza de Deus e endereçar a Ele as mentes dos homens”. [4]

A mensagem transmitida pelo ícone é, e sempre será, atual, porque diz respeito ao homem e ao divino; por isso sua singela beleza é expressão do Originário e, ao mesmo tempo, antecipação do Definitivo.

I. 3 – A arte sagrada dos ícones

O aparecimento dos ícones na história da Igreja registra sua importância, pois não eram considerados como uma mera obra artística. Os primeiros iconógrafos tratavam de retratar com cores e pinturas o que os Evangelhos expressam em palavras. Contudo, os ícones e, em geral, a cultura bizantina, são uma mescla de cultura, arte, história, fé etc... , que se faz viva no coração dos habitantes do Império. Desde os imperadores até as pessoas mais humildes, viviam as experiências dos ícones como expressão da fé de um povo que experimentava diariamente a intervenção de Deus, da Theotokos. [5] e dos Santos na sua vida cotidiana, tal como viviam as primeiras comunidades cristãs de Jerusalém. Toda a cultura bizantina (arquitetura, escultura, pintura, bordados, manuscritos, entre outros), está iluminada por essa fé que impregna cada uma das atividades e da vida dos habitantes do Império do Oriente e Ocidente.

Enquanto o Ocidente expressa essa fé vivida mediante a experiência pessoal do artista, o Oriente atém-se aos cânones estabelecidos pela Igreja. O primeiro expressa sua própria experiência e os próprios sentimentos de fé, pintando com total e absoluta espontaneidade qualquer motivo religioso que lhe é sugerido, solicitado ou que, simplesmente, expresse o que ele sente ou experimenta. No Oriente, os iconógrafos, seguindo os ensinamentos do Mestre Dionísio e, em geral, as determinações da Igreja, buscam reproduzir as mesmas passagens dos Evangelhos, omitindo qualquer experiência ou sentimento pessoal vivido, tratando simplesmente de uma profunda vida de oração, expressando-se no conteúdo dos Evangelhos. Os iconógrafos, antes da iconografia ter passado a ser objeto de ocupação de pessoas amantes das artes manuais, eram sempre monges, e a iconografia era uma função conferida pela Igreja. A tarefa do iconógrafo sempre foi comparada à do sacerdote, mesmo porque ambos pregavam a Palavra de Deus; o Iconógrafo, com a pintura e as cores, o sacerdote, mediante a Palavra ou a Escritura.

I. 4 - Os Primeiros Ícones Cristãos

Após a morte e a ressurreição de Cristo, a nova fé no Ressuscitado espalhou-se rapidamente por todo o mundo romano e pelo Oriente Médio. As histórias dos Apóstolos e das testemunhas que tinham conhecido Jesus Cristo davam descrições de sua aparência. Num dado momento as pessoas começaram a criar e distribuir pinturas de Cristo, e inclusive de seus discípulos e dos mártires da fé cristã.

Assim, havia umas pinturas muito antigas de São Pedro e de São Paulo. Entretanto, a Igreja ficou um tanto dividida quanto às imagens de Cristo.


I. 5 - Ícones do Período Médio Bizantino


No princípio do VIII século irrompeu uma controvérsia terrível na Igreja Ortodoxa entre os iconoclastas (quebradores de imagens) e os favoráveis aos ícones sobre o uso dos ícones na adoração e na oração. A questão foi discutida na Igreja durante cem anos. Os iconoclastas falavam em adoração dos ícones, enquanto os que eram favoráveis falavam somente em proskynesis. [6] Essa mesma veneração era concedida ao imperador, como reverência, saudação e respeito, mas não como adoração. O Imperador Constantino através de um edito em 730, decretou a proibição dessas imagens. Esta proibição era ilegal, pois pela primeira vez, um imperador influía diretamente nas questões da Igreja, ignorando os outros patriarcas e inclusive, o papa em Roma.

O edito foi observado estritamente em Constantinopla. Mas, em 843, essa proibição foi revogada, com a vitória total dos ortodoxos.

Durante o período iconoclasta, toda a tradição da pintura dos ícones foi amplamente prejudicada. Podemos supor que os ícones criados durante esse período tinham um ar mais austero, talvez um tanto severo na aparência, considerando que nessa época quase todos os ícones eram produzidos nos mosteiros pelos monges.

Quando os pintores de ícones se tornaram livres para trabalhar abertamente, após a revogação de 843, os artistas necessitaram de muitos anos para voltar a dominar a técnica e os estilos tradicionais, além de que os materiais para a pintura e o trabalho do mosaico tornaram-se difíceis de encontrar. Os ícones eram pintados na têmpera em ovo, no mosaico, no marfim, no vidro, no mármore, no ouro e em pedras preciosas. Mas, aos poucos, a arte de Bizâncio foi alcançando um refinamento e uma beleza talvez nunca antes conseguida.

Notas
[1] “Eucologion” pg 532.
[2] Documentos do VII Concilio Ecumênico de Nicéia (DS 303)
[3] “Eucologion” pg533[4] Carta Apostólica “DUODECIM SAECULUM” sobre a veneração das imagens por ocasião do XII Centenário do II Concilio de Nicéia.
[5] Palavra grega que intitula a Virgem Maria de “A Mãe de Deus”, Titulo dado no III Concilio Ecumênico Éfeso (DS 111a). [6] proskynesis: Palavra grega que significa veneração

Postado por Fernando Tetsuo, a pedido do autor.