quinta-feira, 1 de abril de 2010

O Catolicismo e a Construção da Identidade Nacional (Parte I)

"O seguinte artigo é de autoria de Moisés de Lemos Martins, Professor Catedrático de nomeação definitiva da Universidade do Minho, publicado em 2 de Junho de 2009 na Revista de Religião da Universidade de Minho."

1.A estrutura de um campo religioso

No contexto da sociologia da religião em Portugal, e especificamente no contexto da sociologia do catolicismo, poucos são os estudos que contrariam um persistente equívoco na avaliação da natureza do fenómeno religioso.
É, com efeito, frequente identificar a religiosidade do povo português com as manifestações sociais da religião maioritária em Portugal, ou seja, com as práticas religiosas do catolicismo. Acontece, no entanto, que nem o campo religioso se restringe em Portugal ao campo circunscrito pela religião católica, nem a religiosidade se esgota na sua dimensão de prática religiosa.
Que o campo religioso se não restringe em Portugal ao campo circunscrito pela religião católica é a tese que Moisés Espírito Santo tem procurado fundamentar já lá vão cerca de dez anos. Lembramos aqui sobretudo As origens orientais do religião popular portuguesa (1988) e as fontes remotas da cultura portuguesa (1989). E encontra-se no prelo um interessante ensaio, no mesmo sentido, de José Garrucho Martins, intitulado “o transe e as bruxas”. Dos nomes às práticas. Por outro lado, entendemos hoje por religiosidade “toda a manifestação, exterior ou interior, da relação entre a Divindade e o homem”, pelo que analisar apenas a prática religiosa consiste em reduzir o fenómeno religioso apenas àquilo que manifesta “a obediência exterior que uma pessoa ou grupo social prestam a certas obrigações (preceitos) ou a certos conselhos (devoções) dados por uma Igreja”. Um campo religioso supõe, é verdade, as várias dimensões da sua estrutura. E é possível hoje, com a ajuda dos trabalhos de Glock (1961), Stark e Glock (1968), Benveniste (1969), Bourdieu (1971), Michelat (1990 a, 1990 b), entre outros, identificar seis dimensões de análise. Uma dimensão experiencial, que contempla a comunicação com a divindade, e que é constituída pelos sentimentos, percepções e sensações religiosos, experimentados por um indivíduo. Uma dimensão ideológica, que incide sobre os pensamentos, sobre as representações da natureza da realidade divina. Uma dimensão ritual, que se reporta aos actos que os indivíduos cumprem no domínio religioso. Uma dimensão intelectual, que dá conta dos conhecimentos que os indivíduos têm dos dogmas que fundam a sua fé. Uma dimensão pragmática, que se relaciona com aquilo que os indivíduos fazem, assim como com as atitudes que tomam, em virtude dos conhecimentos, práticas, pensamentos e experiências que têm. Uma dimensão institucional, que considera o vínculo institucional que objectiva a religião, ou seja, que a oficializa. Esta última dimensão está estreitamente associada à etimologia religare, que com Lactâncio e Tertuliano vem substituir a mais antiga etimologia de relegere (uma hesitação que retém, um escrúpulo que impede, e não um sentimento que oriente para uma acção). Na acepção cristã, a religio é uma força exterior ao homem e é explicada em termos objectivos, dado que é o vínculo da piedade, isto é, uma dependência do fiel face a Deus, uma obrigação no sentido próprio da palavra.
Neste entendimento, ser católico é mais do que obedecer a uma prática religiosa. Ser católico, dizemo-lo com as palavras de Guy Michelat, “é pertencer a um grupo cujos membros possuem todos em comum, um sistema organizado de crenças, de práticas religiosas, de convicções, de sentimentos, de representações, de valores, etc., que se constituiu e se reformulou ao longo da história” (Michelat, 1990 b, II: 630). E vários são os graus de adesão ao sistema simbólico que constitui o catolicismo. Como aliás acontece com toda a identificação religiosa, a identificação católica tem como pólos extremos de adesão, por um lado a aceitação deste sistema simbólico na sua totalidade, por outro a mera reivindicação de uma identidade católica, ao arrepio de qualquer prática ou mesmo de qualquer sentimento religioso.

2. A prática religiosa católica e a definição da identidade nacional

Feitos estes esclarecimentos sobre a natureza do fenómeno religioso e sobre o que significa reivindicar uma pertença religiosa, assinalamos que datam do início dos anos oitenta os estudos que em Portugal avaliam a identidade nacional pela análise da prática religiosa católica.
O sociólogo jesuíta Augusto da Silva, publicou em 1979 “Prática religiosa dos católicos portugueses”, vindo a retomar parcialmente os resultados apurados neste estudo, em artigo feito de parceria com o seu confrade Vaz Pato, em 1981. E em 1981, foi o dominicano Luís de França quem também deu à estampa Comportamento Religioso da População Portuguesa.
Todos estes trabalhos utilizam sobretudo os dados apurados no recenseamento da prática religiosa dominical (assistência à missa, comunhões entre os assistentes, casamentos pela Igreja, baptismos), promovido pela Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), em Fevereiro de 1977. Desde logo, pelo tipo de dados de que dispõem, ficam os autores condicionados a seguir uma metodologia tradicional e, apesar do muito mérito do trabalho empreendido, vêem significativamente restringido o alcance da sua pesquisa.
Disso se dão conta Augusto da Silva e Vaz Pato. Sendo seu ensejo analisar “a realidade sócio-religiosa”, mas dispondo apenas de elementos relativos à prática religiosa, pressente-se neles algum mal-estar pela inadequação existente entre os meios que empregam e os objectivos que se propõem. Essa a razão por que se apressam a avisar da necessária distinção que há que fazer entre religiosidade e prática religiosa. E logo se fica a saber que não vão dar-nos conta da religiosidade em Portugal, isto é, que não vão dar-nos conta de “toda a manifestação, exterior ou interior, da relação entre a Divindade e o homem”
Limitar-se-ão a analisar “as manifestações sociais da religião do Povo português”, afinal a prática religiosa, que ‘apenas’ manifesta “a obediência exterior que uma pessoa ou grupo social prestam a certas obrigações (preceitos) ou a certos conselhos (devoções) dados por uma Igreja” .
O estudo de Luís de França, por sua vez, não manifesta este tipo de preocupações. O seu objectivo declarado é o de traçar o mapa da “sociologia religiosa contemporânea” em Portugal (França, 1981: 9). À semelhança, porém, do que acontece com os trabalhos de Augusto da Silva e Vaz Pato, Luís de França dá absoluto favor ao tratamento das práticas religiosas que exprimem a adesão à Igreja Católica.
Mas só na aparência é que há aqui uma verdadeira escolha. Por um lado, cerca de 95% dos portugueses confessar-se-iam católicos, em 1977 (não temos dúvidas de que se trata, no entanto, de uma percentagem demasiado optimista), o que ajuda a compreender que o catolicismo pudesse quase sem escândalo reclamar todo o campo religioso e apresentar -se como a religião dos portugueses, e por outro lado, eram inexistentes os dados relativos às práticas religiosas não católicas (França, 1981: 9).
Entretanto, em Março de 1991, passados catorze anos sobre a realização do pnmelro “recenseamento da prática dominical”, a Conferência Episcopal Portuguesa promoveu um segundo recenseamento, de que conhecemos o Relatório, com Resultados Preliminares (1994), da responsabilidade do Centro de Estudos Sócio-Pastorais da Universidade Católica Portuguesa.
Ficámos então a saber que 26 % dos portugueses, com idade igual ou superior a sete anos, participam na missa (Braga, que tinha 63,2% de praticantes em 1977, passa agora para 55,7%; Beja que tinha 2,9% passa para 6,2%; entretanto Setúbal passa de 4,2% para 5,6%, embora seja hoje a diocese do país com mais baixa percentagem de praticantes). Em termos gerais, de 1977 a 1991 os praticantes decrescem 3,10/03.
Não estão ainda apurados os resultados relativos às variáveis “baptizados” e “casamentos católicos”. Lembramos, no entanto, os últimos resultados conhecidos: 95% dos portugueses eram baptizados e 80% casavam-se catolicamente (Silva, 1979, retomado por Silva e Pato, 1981)4.
Pode assim dizer-se que, relativamente à década de setenta, é possível estabelecer com bastante exactidão o mapa da “geografia religiosa do país”, se por tal entendermos a distribuição da frequência às práticas religiosas (Silva, 1979; França, 1981)5. E para a década de noventa, já não andamos longe dos resultados obtidos por Augusto da Silva e Luís de França. Mas se descontamos o que acontece com as práticas, podemos dizer que permanecem por caracterizar os vários níveis de adesão dos portugueses ao sistema simbólico católico (representações, normas, valores, crenças, atitudes face à instituição).
É verdade que os resultados do último recenseamento promovido pela Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) confirmam uma relativa diminuição das práticas religiosas católicas, confirmando uma tendência que o começo dos anos 70 tornou manifesta. Estamos convencidos de que poderíamos dizer a mesma coisa das crenças religiosas, se porventura o inquérito da CEP incidisse nelas, o que não acontece. Mas, apesar da diminuição das práticas e da crenças religiosas, o novo recenseamento geral da população confirma, sem dúvida, a manutenção do sentimento de pertença ao catolicismo, como grupo cultural. Este facto, por si só, representa não apenas uma expressão de pertença subjectiva a um grupo, mas também uma expressão de pertença objectiva, pela adesão, ainda que em níveis variados, a um sistema simbólico.

3. Português, logo católico

Nos limites do enquadramento feito, quer dizer, uma vez dadas estas premissas, que identificam o grau de pertença ao catolicismo pela avaliação da prática religiosa, não choca concluirmos com o silogismo “português, logo católico”.
Claro que outras foram as razões que tomaram célebre este raciocínio. Salazar reconhecia que a adesão “aos princípios de uma só religião e aos ditames de uma só moral, digamos, a uniformidade católica do País”, tinha sido, através dos séculos, “um dos mais poderosos factores de unidade e coesão da Nação Portuguesa” (Salazar, 1951: 371). Daí que lhe interessasse “aproveitar o fenómeno religioso como elemento estabilizador da sociedade e reintegrar a Nação na linha histórica da sua unidade moral” (lbid.: 372-373). Quer dizer, a religião era, a seus olhos, “factor político da maior transcendência” (lbid. : 371).
Podemos dizer que todo o discurso sobre a identidade, seja ela de um país, região, grupo ou classe social, revela o campo de uma luta simbólica, onde o que se decide é quem tem o poder de definir a identidade e o poder de fazer conhecer e reconhecer a identidade definida (Bourdieu, 1980: 67). Ora o discurso salazarista sobre a identidade nacional visa tomar legítima a definição católica de identidade, pelos manifestos ganhos políticos daí resultantes.
A identidade indica, com efeito, aquilo sobre que se age para melhor constituir ou fazer reconhecer o grupo como unidade9
E no caso em apreço do discurso salazarista, age-se sobre a religião católica. Porque é um importante “factor de unidade e de coesão nacional”, a religião católica “é um factor político da maior transcendência”: reúne as condições que lhe permitem representar a identidade nacional.
Claro que a definição da nossa identidade católica não pode escamotear o modo de ser da realidade social. A identidade nacional, que é simultaneamente uma realidade instituída e uma realidade representada, é em ambos os casos o lugar simbólico de uma luta incessante pelo poder de divisão do mundo social. É que não há uma “essência” das nações, como ensina Eduardo Lourenço, “fora da luta equívoca para perenizar um ‘projecto’ de existência autónomo, ou maximamente autónomo, sempre ameaçado, do interior ou do exterior, pelas contradições ou fraquezas dos elementos que o compõem” (Lourenço, 1983: 16). Nunca, continua E. Lourenço, a identidade foi um dado em si, um mero atributo da existência histórica. Sempre a identidade foi esforço e luta por uma estruturação sem cessar posta em causa, afirmação de si com as mais diversas tonalidades, desde as eufóricas às suicidárias, tanto por causas ou motivos intrínsecos, como extrínsecos (Ibid.: 16).
É pois, a esta luz, como combate por um conceito católico de identidade nacional, como luta por uma específica ordenação simbólica do país, que devemos perspectivar a definição (di/visão) que Salazar fez do mundo português .

Professor Catedrático Moisés de Lemos Martins

- Presidente do Instituto de Ciências Sociais desde Janeiro de 2004, Moisés de Lemos Martins é Professor Catedrático de nomeação definitiva da Universidade do Minho desde 1998, trabalhando sobretudo nos domínios da Semiótica e da Sociologia da Cultura. Foi o Director do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS), desde a sua fundação, em 2002, até Julho de 2006, e é director da revista científica “Comunicação e Sociedade” desde 1999.