quinta-feira, 21 de junho de 2012

"O Nascimento das Religiões" - Parte II

Dissemos no post anterior, segundo Yves Laurant, sobre seu trabalho extensivo de pesquisa sobre o nascimento da religiosidade e sentimento religioso. Ainda sob a perspectiva de Laurant, a origem da religiosidade se encontra nas religiões xamânicas da sibéria, mais precisamente do povo Evenque.

Dada essa discussão inicial, no capítulo posterior Laurant disserta sobre a evolução do xamanismo na História, durante e pós a Revolução Neolítica, momento onde muitos povos deixaram seu estilo de vida nômade para se sedentarizarem e criar animais e praticar a agricultura. Dado que a Revolução Neolítica, ou a Revolução Agropastoril, como coloca Laurant, criou uma barreira de "superioridade" entre homens e animais, sua tese é de que o xamanismo como religião tipicamente nômade, de caça e de igualdade espiritual entre homens e animais, necessitou de uma evolução(¹), ou mudança. Como pergunta, podemos formular o seguinte: Se a Religião cuida, neste momento, exclusivamente da atividade caçadora, qual o lugar que assume nas sociedades hidráulicas, pós Revolução Neolítica?

Nesta brevíssima dissertação, podemos identificar alguns itens da qual Laurant aponta como principais mudanças do Xamanismo, ainda na região da Sibéria, quanto á sedentarização de algumas sociedades. Primeiramente, o crescimento populacional muda drasticamente a sociedade, criando hierarquias entre as pessoas entre pequenos e grande criadores/agricultores. Igualmente, é criado um tipo de, segundo Laurant, estatuto da velhice, onde a idade é celebrada e idolatrizada, criando a noção de ancestralidade. Em outras palavras, o culto aos ancestrais, mais velhos e que já foram, é apontado como principal mudança das novas sociedades, espiritualmente falando. Com a mudança de tamanho dos grupos, estes clãs e linhagens acabam se definindo com referência á estes ancestrais, ou defuntos, como coloca o autor. Então, da ação de caçadores para pastores-coletores, aparecem mudanças como:

1) laço com as almas dos ancestrais antes da antiga relação de irmandade que humanos tinham com animais;
2) a representação do mundo passa de horizontal para vertical, ou seja, há a criação de uma hierarquia espiritual, envolvendo espíritos do mundo "palpável" da qual a perspectiva horizontal, igualitária do mundo passa para uma visão de mundo dominada por instâncias superiores;
3) surgimento de ritos essenciais, como a prece e o sacrifício;
4) mudança de noção de males como contrapartida (em uma linguagem simples, o famoso "toma lá, da cá") para males como sanções, ou castigo divino;
5) introdução de noções de graça por meio de sacrifícios, demonstrando uma nova desigualdade espiritual entre os seres;
6) um isolamento do xamanismo como ritual para curas individuais e adivinhação.

Laurant ainda cita por muitas vezes Roberte Hamayon, antropóloga francesa e atual diretora da École Pratique des Hautes Études. Hamayon cita em um de seus artigos uma sociedade de pastores-caçadores ehirit-bulagat, da qual acreditavam ser descendentes do "Senhor Touro" (Buha-Nojon), e que dele vinha seus rebanhos, pastagens, territórios e conhecimentos. Então, podemos identificar também a criação de um "ser supremo", alguma força ou alguma entidade criadora, que dele(a) provém tudo que há na terra e tudo que é conseguido pelos seus seguidores. Essa noção de "ser supremo" certamente deriva da forte hierarquização espiritual da qual tais sociedades estão passando. Por isso, a necessidade de venerar e implorar para estas já chamadas divindades.

Enxergamos também a importância dos sacrifícios nestas sociedades hidráulicas. Enquanto no xamanismo "tradicional" o xamã é visto como um intermediário nas barganhas entre o homem e os espíritos, conversando com eles e sabendo suas "artimanhas", no xamanismo "adaptado" não há necessidade de entender o que os espíritos dizem, e sim um "pedido de graça" é feito por meio de preces, onde o sacrifício entra como "pre-requisito" para a obtenção desta graça. Enquanto o caçador primeiro obtém e dá em seguida, o pastor primeiro oferece, tendo em vista conseguir depois, mas pegando aquilo que "produziu.

Ao contrário, a "punição" ou "castigo" é dada pelos ancestrais e espíritos superiores pelo "deixar de fazer". Suas sanções são aplicadas contra ações que transgridem uma ordem, hierarquia ou mandamento dado. Aqui percebemos a diferença com o xamanismo "tradicional", da qual punições são dadas por transgressões feitas, diferente do xamanismo "adaptado" que pune por rituais ou ações não feitas.

Por fim, o papel do xamã muda drasticamente durante a Revolução Neolítica. Ele acaba por perder suas funções coletivas quando a importância da caça diminui, e sobretudo quando a sociedade se hierarquiza colocando novas "divindades toda-poderosas" em seu lugar. Outro fator que auxilia na perda de importância do xamã é a criação de uma linguagem e escrita, da qual é possível a criação de uma liturgia utilizando-os. Portanto, o xamã acabou por recolher-se ao ambiente privado, praticando curas pessoais e bênçãos particulares e pontuais. Lambert ainda identifica, neste tipo de xamanismo "adaptado" a ampla presença de mulheres, provavelmente pela importância espiritual não estar mais no xamã. Não por "machismo" no sentido moderno, mas sim pela sociedade basicamente patriarcal e cultura centrada no criador e agricultor, funções desempenhadas primariamente pelo homem nestas sociedades. A presença das mulheres, ao contrário do que se imagina, está mais centrada no xamanismo branco, ou seja, de benfazejo, enquanto a presença masculina é mais comum no xamanismo negro, prejudicial e especialista em destruição e praga. Nota-se também que a separação entre xamanismos brancos e negros surgem bem posteriormente, com talvés a influência budista ou cristã.




(¹) Aqui, colocamos o termo "evolução" não na errônea intenção de "superioridade". Entendemos "evolução" como fatores que fazem com que determinado ser vivo, sociedade ou até mesmo utensílios sejam mais apropriados e/ou adaptados para novas condições de existência.

por Fernando Tetsuo Miyahira.